Paixão simples da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2023), prêmio Nobel 2022, expõe a voracidade do ato de se apaixonar loucamente por alguém. A escrita confessional de Annie eleva o tema para um lugar muito particular, mas que consegue se conectar com boa parte dos sentimentos e impulsos de quem já se apaixonou na vida. Se a paixão já é selvagem por natureza, no caso da narrativa ela adentra por um lugar ainda mais complicado, pois nossa narradora/personagem está envolvida com um homem casado. Além de narrar toda a sua excitação e angústia diante do caso de amor, Annie Ernaux nos mostra como o processo de escrita foi fundamental para que conseguisse, minimamente, levar sua paixão para o campo da razão, não sem antes perdê-la completamente.


Uma paixão pode ser arrebatadora e causar muita dor, principalmente se olharmos para ela mais pelo viés da moralidade do que para as razões individuais e intransferíveis que podem conectar duas pessoas. Uma das facetas mais interessante da obra é que Annie não pousou no lugar da culpa e do arrependimento para narrar a história, ela apenas faz uma tentativa de dissecar esse sentimento, principalmente após o afastamento, para dar conta de colocá-lo em algum lugar que dê notícias do porque nos apaixonamos e do porquê dói tanto.

Por sorte, ela sempre teve a companhia da escrita para sublimar suas vivências. Enquanto estava envolvida com o homem, o qual ela chama de A, a escrita se mostrava um “meio de passar o tempo entre um encontro e outro”, algo que depois, com o afastamento da situação, ela perceberia que era algo maior que isso.

Com frequência tinha a sensação de viver essa paixão como se escrevesse um livro: a mesma necessidade de executar à perfeição cada cena, o mesmo cuidado com os detalhes. E até pensava que não me importaria em morrer depois de ter ido ao limite da minha paixão - sem poder precisar o que significava “o limite” -, da mesma forma que poderia morrer depois que tivesse terminado de escrever isto em alguns meses.
O livro devassa a paixão e sua relação com o desejo. Todo o tempo a autora nos mostra, em detalhes, as situações que ela decidiu se submeter para pagar o preço daquela fantasia, para saciar aquele desejo em seu estado mais ardente. Durante os meses em que viveu com A, Annie se entregou à ânsia de seu próprio corpo à espera do corpo daquele homem: “Nessas horas, eu era apenas o tempo passando por mim”. “Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo”.

A certeza de toda a narrativa é de que ela estava vivendo uma paixão, e tudo o mais que acontece a partir dessa contestação é quase um ensaio sobre esse sentimento e o que damos conta de fazer quando nos deparamos com ele.

Fico me perguntando se, na verdade, não escrevo para saber se os outros fizeram ou sentiram as mesmas coisas que eu, ou então para que achem normal senti-las. E até mesmo para que as vivam, por sua vez, sem lembrar que um dia leram em certo lugar alguma coisa sobre o assunto.
Um outro ponto que merece menção é o acesso a uma narrativa que se debruça sobre a paixão por uma visão feminina. A paixão é um tema clássico da literatura, que perpassa todos os gêneros literários e que se tornou referência de muitos escritores consagrados. Portanto, é inspirador poder ler sobre o tema sob uma outra ordem, uma outra interpretação, algo que felizmente vem acontecendo com mais frequência na literatura contemporânea.