Reflexos do mundo: na luta do Fabien Toulmé (Editora Nemo, 2023) é um quadrinho francês que chegou com uma proposta inovadora e de grande importância para as temáticas sociais ao redor do mundo. A HQ coloca Toulmé como ele mesmo - o quadrinista - e ao mesmo tempo como personagem. A história acompanha seu processo de pesquisa para escrita e ilustração de uma obra que é também um livro reportagem. Toulmé passa pelo Líbano, Brasil e Benim movido pela vontade de conhecer histórias reais de lutas populares, seus líderes e suas motivações. O que ele encontrou foi mais do que lideranças lutando por direitos humanos, mas idealismos com um recorte que perpassa fortemente questões econômicas, sociais e de gênero.


A nossa viagem com Fabien Toulmé começa pelo Líbano, onde ele participaria de uma feira do livro que foi cancelada devido um estado de convulsão social. Somos contextualizados sobre uma realidade local que acabou fomentando o nascimento de uma revolução chamada Thawra.

As manifestações começaram em 17 de outubro de 2019, após o anúncio pelo governo da instauração de uma taxa a ser cobrada sobre as ligações efetuadas via whatsapp para repor os fundos do Estado.
Uma grande parcela da população foi para as ruas, obstruíram vias, fecharam comércios, colocaram fogo em pneus, enfrentando de forma inédita governo, polícia e milícias. O senso comum logo cumpre seu papel de nos levar para um lugar de questionamento da legitimidade da luta e nos pegamos pensando: “mas isso tudo por causa do whatsapp?” O quadrinho então vai nos mostrando como uma revolução pode nascer de algo que não é a causa principal da revolta, mas sim o estopim para uma série de problemas que levaram a uma irritação geral com as desigualdades, com a violência e com a classe dominante que uma hora transborda.

Uma revolução, aparentemente nascida da taxação do whatsapp, levou para as ruas uma população que já estava sofrendo há décadas com elevação do custo de vida, serviços públicos ineficientes, inexistência de transporte público, saúde precária, péssimas condições das escolas e universidades e “um dos exemplos mais simbólicos dessa falta de direitos essenciais, é a rede elétrica do país”. As pessoas no Líbano simplesmente passam horas sem energia porque a rede funciona de forma precária. O ponto de partida das manifestações é a vontade do povo de ter acesso a direitos essenciais.


Fabien não só conta um pouco da história do Líbano e do conflito político, como também apresenta uma jovem ativista chamada Nidal que se tornou a voz da Thawra. Através de uma entrevista, Fabien entrelaça a história de vida de Nidal com a história de seu país. Assim, consegue traçar uma linha do tempo e um desenho que permite fazer reflexões sobre como nasce a motivação de alguém para abraçar uma causa, mesmo que isso a coloque em situação de perigo.

Para mim, ser feminista não é só defender o direito das mulheres, é defender todos os direitos de todo mundo.


Na segunda história o artista chega um pouco mais perto da gente para investigar a luta da comunidade do Porto do Capim, em João Pessoa. O quadrinista afirma em certo trecho da história que João Pessoa é provavelmente uma das cidades do mundo onde ele se sente mais em casa. Fabien tem uma relação com o Brasil que é profissional e também afetiva. Ele estudou muitos anos em João Pessoa e foi também o lugar que conheceu sua esposa e onde sua primeira filha nasceu. Apesar de João Pessoa ser uma cidade que ele possui amigos, familiares e ser o destino de muitas de suas férias, Toulmé não imaginava que ali também havia uma comunidade, atravessando a linha do trem e localizada na beira de um rio. Uma comunidade ameaçada de expulsão para construção de um parque ecológico.

Como em todo lugar do Brasil, e talvez do mundo, o processo de retirada de comunidades de seu lugar de origem pela especulação imobiliária se dá com bastante violência. Os governos fazem um discurso de garantia de uma nova moradia, mas sempre em uma região que as famílias não conhecem e geralmente em uma localidade afastada. Tudo é realizado sem uma verdadeira preocupação com a escuta das demandas da comunidade e embasado em um discurso de valorização apenas do comércio e do turismo.

Fabien adentra a comunidade, desafiando um estereótipo de violência que é sempre colocado sobre bairros mais pobres, para conhecer uma das principais lideranças que lutam contra a desapropriação daquele povo. Aproximando das pessoas, também conhece um pouco da história da cidade de João Pessoa e algumas peculiaridades que a levaram a ser como é hoje. Fabien parte do início do século XX, passa pelos anos 20 e a importância do porto fluvial para o desenvolvimento da cidade e o nascimento de comunidades próximas ao rio.

A história da jovem Rossana se confunde com a história da comunidade do Porto do Capim, sendo que sua família foi uma das primeiras a se alojar na região. Ao ser entrevistada por Fabien, ela relata como foi sua infância e juventude na comunidade e como estabeleceu suas primeiras relações de afeto ali. Mais uma vez, o quadrinista se vê diante de uma luta encabeçada por mulheres e tem uma conversa interessante com Rossana sobre essa peculiaridade. No caso da luta de Porto do Capim, o recorte de gênero é ainda mais explícito. Os homens, mesmo estando tão ameaçados de perder a moradia quanto as mulheres, simplesmente não se envolvem no movimento, assim como eram também as mulheres que majoritariamente conduziam os barcos no momento da fundação da comunidade.

As mulheres têm que lutar o tempo todo e provar que são capazes. No meu caso, se você juntar o fato de que sou negra e nascida num bairro pobre, você entende melhor por que isso gerou em mim uma forte vontade de lutar.

Por fim, chegamos ao Benim, país do continente africano, para conhecer Chanceline e uma história de luta pelos direitos das mulheres. Algo empolgante na história da jovem é que seu engajamento nasceu e se desenvolveu na escola. Foram vários os fatores que levaram Chanceline a questionar a própria realidade, e grande parte deles vinculados à situação das mulheres na sociedade beninense. O Benim é um país que está na 158 posição de 189, na última classificação das desigualdades entre homens e mulheres estabelecida pelas Nações Unidas. Somado a isso é considerado um dos países mais pobres do mundo. Dentre tantas questões que esse contexto social pode causar a um país, Chanceline acabou se aproximando de uma luta que estava ali, muito perto da sua realidade: a problemática da gravidez precoce.

O problema da gravidez precoce no Benim está, com efeito, longe de ser insignificante. Entre 2016 e 2020, mais de 9.300 casos de gravidez foram registrados no meio escolar (a maioria nos anos finais do ensino fundamental). O fenômeno parece inclusive estar ganhando força, já que só entre 2019 e 2020, foram contabilizados mais de 2000 casos de gravidez entre as jovens beninenses.
O trabalho realizado por Chanceline se voltou para a informação e conscientização de jovens (meninos e meninas) no ambiente escolar. Falando sobre sexo, prevenção e gravidez precoce, se torna impossível não passar pelas questões ligadas aos direitos das mulheres. A gravidez precoce carrega consigo questões densas que passam pela evasão escolar, pela autonomização das meninas, estigmatização da mãe solo, que se baseiam em uma sociedade machista e patriarcal.

Crescendo como menina num vilarejo, a gente só tem como exemplo de mulheres as que se casam muito jovens, que não vão mais à escola e que dependem dos seus maridos. No meu caso, meu pai teve um papel determinante na descoberta de outra saída possível. Quando ele assistia o jornal na TV, ele me chamava. ‘Tá vendo como essa mulher se expressa? Como ela fala um bom francês? E ainda por cima usa terno!’ Durante toda a minha infância, para me motivar a estudar, eu me agarrei a essa imagem das mulheres de terno na televisão.

Fabien compartilha conosco suas reflexões sobre essas histórias e acha um fio condutor interessante para fazer um recorte universal. Ele percebe como as lutas que colocam em risco uma ideia de futuro mais saudável e igualitário são maioritariamente assumidas por mulheres. São muitos os pontos problematizados pelo quadrinista e as entrevistadas para entender essa constatação. Uma delas é a predisposição das mulheres em estabelecer um olhar coletivo sobre o mundo.