Salvatierra do Pedro Mairal (Editora Todavia, 2021) é um romance arrebatador. Com uma escrita envolvente e bastante confessional, o autor conta a história de Salvatierra, um artista que dedicou sessenta anos de sua vida a uma pintura que na decorrência de sua morte já contava com 4 quilômetros de extensão. Sua pintura segue o curso de um rio, e partindo dessa continuidade que o curso das águas representa, o pintor foi eternizando por toda a tela vários episódios importantes de sua vida, como se aquela arte fosse também sua biografia.


O processo de criação da tela de Salvatierra é singular, como também sua própria história de vida. Quando ainda muito pequeno sofreu um acidente de cavalo que danificou suas cordas vocais. Ele cresceu sem carregar as mesmas expectativas que eram colocadas sobre os ombros de seu irmão e demais homens da família. Salvatierra teve a oportunidade de crescer acompanhando as mulheres da família e logo se aproximou de um artista da região que o apresentou à pintura.

Segundo contavam, enquanto ele ainda se recuperava, punham sua cama debaixo do caramanchão e ele desenhava pássaros, cachorros, insetos, e fazia retratos furtivos das primas adolescentes e das tias cinquentonas tomando limonada fresca à sombra do fim da tarde.
Toda a comunicação perdida através da fala se projetou no olhar atento de Salvatierra para seu próprio mundo. Ele agora era visto pela família como um inválido, “passou a ser o mudinho, o bobo da família”. Mas foi com um episódio de quase morte que nasceu aquele que seria a própria memória da família.

Miguel, o filho mais novo de Salvatierra é o narrador do livro. Quando o pai morre e os filhos se veem com a missão de dar um destino para a grande obra do pai, a história passa a nos levar para questões especiais que versam sobre arte e fazer artístico, memória, afeto e família. É emocionante acompanhar a narração de Miguel e ver como ele vai descobrindo a essência do pai ao analisar cada um dos rolos de pintura. Em certa ocasião ele chega a dizer: “Às vezes, sentia que estava conhecendo meu pai pela primeira vez”. Assim, vai conhecendo também a si mesmo e a história de sua família. A ideia de quem realmente era Salvatierra vai se desnudando e por vezes se anuviando ainda mais à medida que cada tela é desenrolada.

Durante a leitura e olhando detidamente para a forma como Miguel analisa o próprio pai, acabamos fazendo alguma relação com o conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, uma vez que estão ali presentes o rio enquanto rio e o rio enquanto metáfora. Tanto o romance como o conto versam sobre essa maneira de registrar as mudanças, os deslocamentos e as descobertas que ocorrem em toda uma trajetória de vida, e que também podemos relacionar com a história da arte, da literatura e do pensamento.


As grandes proporções da tela pintada por Salvatierra se difere do alcance que ele desejava em termos de reconhecimento artístico e também de seu estiloso de vida discreto. Durante os anos ele pintou quase que de forma clandestina, em segredo. Suas obras não eram expostas e viviam guardadas em um galpão pertencente a família. Salvatierra era um funcionário dos correios exemplar e nas horas vagas o pintor de sua própria vida.

Essa aversão do artista à exposição e sua própria reclusão que tem relação com a vida que precisou levar após o incidente que sofrera, abre algumas brechas na narrativa, que Pedro Mairal preenche com uma audaciosa reflexão sobre a importância da arte e outras questões que perpassam a produção artística.

Se eu fosse desmentir os erros de tudo o que está sendo dito e escrito sobre meu pai, não teria tempo para mais nada. Preciso me acostumar à ideia de que a obra de Salvatierra já não é mais nossa (refiro-me à minha família) e que agora ela é vista pelos outros, contemplada pelos outros, interpretada, mal interpretada, criticada e de algum modo apropriada pelos outros. É assim que deve ser. 
Viajamos pela vida dessa família através das descrições e das imagens pintadas por Salvatierra, que soam tão nítidas mesmo pela leitura, como também somos levados a pensar sobre as diversas formas de consumir arte e como nasce uma persona artística que será exaltada, admirada por críticos e leigos.

Já nas primeiras páginas ficamos sabendo que Salvatierra se tornou um artista cultuado e analisado por especialistas e o narrador também nos mostra o quanto seu caráter misterioso e sua aversão à exposição serviram como incremento para saciar essa nossa sede de criação de mitos.

Esse mito que está sendo criado em torno da figura de Salvatierra nasce em virtude de seu silêncio. Quer dizer, da sua mudez, da sua vida anônima, da longa existência secreta de sua obra e do quase total desaparecimento dela. O fato de que apenas uma tela tenha sobrevivido faz essa peça única valer muito mais. O fato de ele não ter dado entrevistas, não ter deixado nada escrito sobre sua pintura nem ter participado da vida cultural, nem nunca ter exposto, faz com que curadores e críticos possam preencher esse silêncio com as opiniões e teorias mais diversas.
Os filhos de Salvatierra herdaram a grande obra do pai e não imaginavam os lugares que aquela tela os levariam. Especialmente para Miguel, a possibilidade de encontrar um apoio para expor e conservar a obra do pai, se torna uma obsessão. Esse desejo se torna ainda mais latente quando ele descobre que um dos rolos da pintura do pai foi roubado há quase 40 anos.

Em relação à totalidade da obra, o fragmento que faltava era mínimo, mas eu queria encontrá-lo porque me incomodava aquela brecha, aquele salto numa obra tão contínua. Se estivessem faltando quatro ou cinco rolos eu não teria me dado ao trabalho de procurá-los, mas, sendo um só, a pintura estava muito perto de alcançar aquela fluidez absoluta buscada por Salvatierra para que eu não fizesse um esforço. O quadro não tinha nenhum corte vertical. Era uma única continuidade, um único rio.
Enquanto segue as pistas para encontrar o fragmento roubado da obra, Miguel esbarra com episódios que o farão se aproximar ainda mais da figura de seu pai. Alguns fatos ocupam um lugar de certeza, enquanto outros não passam de meras suposições, como quem observa uma tela e tenta adivinhar as circunstâncias ou motivações que levaram o artista a pintar aquela imagem. Miguel perceberá que uma vida pode ser pintada apenas com as cores que quem a vivencia deseja mostrar, que a vida é fluida como um rio que nos levará para outros lugares ainda que se escolha ficar parado em um mesmo lugar.