O jovem da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2022) é um relato autoficcional que nos coloca mais uma vez diante de uma escrita corajosa que utiliza experiências pessoais para tratar de assuntos íntimos, que entrelaçam diversos temas e colocam a vivência feminina em primeiro plano. Na publicação, a autora narra o período em que teve um relacionamento amoroso com um rapaz de 25 anos, enquanto ela tinha 54. Ernaux parte de um acontecimento que poderia se tratar apenas de paixão, amor ou desejo, mas que ganha outras camadas que explicitam nossos preconceitos e hipocrisias enquanto sociedade.


Há cinco anos, passei uma noite inapropriada com um jovem estudante que vinha me escrevendo havia um ano e que queria me encontrar.

“O jovem” é um livro curto de apenas 53 páginas e em formato de bolso, mas que pode servir como uma ótima iniciação à escrita de Annie. Se nos demais livros terminamos sempre com uma vontade de “quero mais”, com “O jovem” não é diferente. Annie escreve pouco e diz muito. Ali estão presentes muitas das características que definem sua obra, então sua leitura surge quase como um convite para embarcar na vida de uma mulher extremamente interessante e que não tem medo de olhar para a própria história sem o peso do julgamento e da moralidade.

Relacionar-se com um homem 30 anos mais jovem, inevitavelmente tem suas questões. É interessante como Annie consegue dizer tanto do que a diferença de idade representa para ela, enquanto pessoa mais madura, quanto do que passa pela experiência do jovem, que ainda não viveu boa parte das experiências que ela já pôde passar.

Ao mesmo tempo que ela embarca na relação, disposta a desfrutar todo o potencial que o encontro entre dois amantes representa, Annie não deixa de olhar para aquela experiência com olhos de quem escreve um ensaio crítico. Observa o rapaz e, por vezes, o vê como alguém que a faz se conectar com lembranças de quando ainda era jovem. Existe uma maneira improvisada de se viver a juventude que ela havia esquecido e que se fazia presente sempre que ele estava por perto.

Tinha consciência de que fazer isso com esse jovem, que vivia as coisas pela primeira vez, representava uma forma de crueldade. Invariavelmente, em relação aos projetos de futuro que ele tinha comigo, eu respondia: 'O presente me basta', sem nunca dizer que o presente era, para mim, apenas um passado duplicado.
Além da diferença de idade, a autora explora os impactos da relação entre duas pessoas de classes sociais diferentes. Annie, uma mulher encaminhada profissionalmente e com independência financeira passa a viver a realidade de um jovem que ainda está se estruturando.

Na casa dele, me deparava com o desconforto e com condições rudimentares de instalação que eu mesma conhecera no começo da vida conjugal com meu marido, quando éramos estudantes. Nas placas elétricas do fogão, cujo termostato já não funcionava, só dava para preparar bifes, que corriam o risco de logo grudar no fundo da frigideira, macarrão ou arroz, que cozinhavam em meio a incontroláveis transbordamentos de água. A geladeira velha e desregulada congelava as folhas no recipiente de salada. Para suportar o frio úmido dos quartos, com seu pé-direito alto e suas janelas soltas, impossíveis de esquentar com aquecedores elétricos deteriorados, era preciso usar três casacos de uma vez.

 Existe um olhar atento para o papel da mulher. A sociedade francesa, assim como a grande maioria das sociedades moldadas pelo modelo patriarcal e machista, não vê com bons olhos a relação entre uma mulher mais velha e um homem mais jovem, o que ironicamente não se aplica a um exemplo contrário. A autora explora essa questão ao narrar as situações que passavam quando estavam em público.

Meu corpo não tinha mais idade. Era necessário o olhar pesado e reprovador de clientes ao nosso lado num restaurante para que eu me desse conta desse corpo. Olhar que, longe de me envergonhar, reforçava minha determinação de não esconder meu relacionamento com um homem ‘que poderia ser meu filho’, enquanto qualquer sujeito de cinquenta anos podia se exibir com uma moça que claramente não era sua filha sem nenhuma reprovação.

“O jovem” é um livro com diversas camadas. Com sua escrita simples e direta, Annie apresenta aspectos importantes para pensar sobre o desejo feminino, a emancipação das mulheres, para repensar a lógica das moralidades, além de traçar um retrato sociológico da sociedade francesa. Um dos pontos altos da obra de Annie é que ao olhar para si, ela consegue olhar para muitos.