A vergonha da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2022) é um dos livros mais profundos de seu projeto autobiográfico. Chama atenção a forma como a exploração da memória de fatos importantes e também corriqueiros de sua juventude e a relação com os pais moldaram sua subjetividade. A vergonha é um relato familiar que fala de traumas inerentes à experiência humana e que também ajudam a traçar o retrato de uma época. Annie Ernaux faz uma reflexão sobre sua existência no âmbito individual que nos arrasta para o coletivo e para as questões sociais, além de tecer reflexões interessantes sobre o processo de escrita.


As primeiras palavras do livro são: “meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”. A partir daí a menina Ernaux passa a nos relatar como esse acontecimento foi um divisor de águas em sua vida, como se passasse a existir um antes e depois da agressão, onde até as cores não eram mais a mesma.

Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia. Continuava brincando, lendo, agindo como antes, mas de algum modo estava ausente. Tudo se tornara artificial. Passei a ter dificuldade para memorizar o conteúdo que, antes, com uma única leitura eu aprendia. No lugar da displicência dos alunos que têm facilidade para o estudo, passei a ter uma hiperconsciência das coisas, sem me concentrar em nada específico.

O evento que Annie relata nesse livro se passa no início dos anos 50 em uma cidade que ela não nomeia, mas onde passou boa parte de sua infância e juventude. Seus pais eram donos de um café nessa mesma localidade e a forma como a autora narra o dia a dia na cidade e seus costumes a transformam em uma personagem importante para entender a narrativa. Annie faz um ensaio que busca investigar com olhos literários de que matéria foi feita, de que lugar sua visão de mundo foi forjada e acaba encontrando elementos importantes sobre sua história.

O que me interessa aqui é encontrar as palavras que eu usava para pensar em mim mesma e no mundo ao redor. Reconhecer o que era normal para mim e o que era inadmissível, até impensável. Mas a mulher que sou em 1995 é incapaz de se ver na menina de 1952, que só conhecia sua cidadezinha, sua família e sua escola, que só tinha à disposição um vocabulário reduzido. E, à sua frente, a imensidão do tempo por viver.
O ponto forte do livro é o relato em si e Ernaux aproveita para fazer uma análise sobre o próprio fato de narrar, de transformar um acontecimento em registro e como o narrar torna aquela cena algo visível para o outro. O acontecimento de violência não consumada que ela presenciou com os pais, o qual ela chama de “a primeira data precisa e clara de sua infância” passou a se tornar uma espécie de fantasma para a jovem Annie, como se ela tivesse a certeza de em qualquer momento aquela cena pudesse se repetir.

Há vários dias, convivo com a cena daquele domingo de junho. Quando a escrevi, eu a vi “nitidamente”, em cores, formas definidas, e ouvi as vozes. Agora, ela ficou acinzentada, incoerente e muda, como um filme a que assistimos numa televisão sem antena. O fato de eu ter traduzido essa cena em palavras não alterou em nada sua ausência de significado. Ela continua sendo o que tem sido desde 1952, um acontecimento ligado à loucura e à morte, que comparei inúmeras vezes, tentando avaliar seu grau de dor, a outros acontecimentos da minha vida, sem nunca encontrar um equivalente.
Para além do episódio com os pais, Annie fala de forma muito demarcada sobre as questões sociais que marcaram aquela pequena cidade francesa nos anos 50, principalmente em relação a uma ideia de inferioridade social que se manifestava no acesso à cultura, aos bens e que se projetava também na própria fala. Uma divisão daqueles que falavam o bom francês. Uma outra noção de mundo se abre para a Annie Ernaux de 12 anos, como uma quebra de inocência. Annie trabalha com algumas dimensões da vergonha que tem a ver com as regras ditas e não ditas adotadas pela sociedade.

Aquilo não podia ser dito a ninguém, em nenhum dos meus dois mundos. Ali tínhamos deixado de pertencer à categoria das pessoas corretas, que não bebem, que não batem umas nas outras e se vestem de modo adequado para ir à cidade.