Pele de homem de Hubert e Zanzim (Editora Nemo, 2021) é um quadrinho que encara de frente as discussões sobre desigualdade de gênero. Partindo de um elemento fantástico, a história embarca por temas reais e que escancaram como funciona a sociedade patriarcal. Enquanto as mulheres precisam exercer um papel pré-determinado antes mesmo de nascerem, aos homens é dado um mundo de possibilidades. Quando se trata de liberdade sexual e da exploração do próprio prazer, a disparidade entre os gêneros se torna ainda mais evidente. É desse ponto que Hubert e Zanzim partem para contar a história de uma jovem mulher que veste uma pele de homem e começa a experimentar uma liberdade que se quer imaginava existir.


A história se passa em um cenário que remete ao período clássico e medieval em plena inquisição. O mais assustador é que por mais que a narrativa esteja ambientada entre castelos e casamentos arranjados, não encontramos qualquer dificuldade em transportar os acontecimentos para a atualidade. Bianca está prestes a se casar com um homem que nem sabe quem é, quando sua tia, notando seu desconforto, lhe conta sobre um grande segredo, uma espécie de herança guardada a sete chaves pelas mulheres da família:

Nós, mulheres da família, temos um segredo. Temos em nossa posse uma pele de homem. Nós o chamamos de Lorenzo. Como eu só tive filhos homens, é seu por direito. Uma vez que a pele é vestida, ninguém duvidará que você é um rapaz. Assim poderá transitar despercebida pelo mundo dos homens.


Bianca passa a vestir a pele e quando se transforma em Lorenzo chama atenção de homens e mulheres por conta de sua beleza e sensualidade. Ela acessa um mundo masculino que possui muitas possibilidades de explorar seus próprios desejos, mas também um mundo onde fica nítido o quanto a masculinidade é também uma performance. Assim, como a sociedade estabeleceu papéis para as mulheres, existe um lugar que precisa ser ocupado pelos homens e que muitas vezes não condiz em nada com seus desejos ou personalidade.

Após sua primeira incursão pelo mundo masculino, onde Bianca/Lorenzo pôde ver de perto as conversas, brincadeiras e comentários impróprios, a garota volta para a casa da tia desolada, uma vez que seu futuro marido também mostrou um lado que ela não queria ver. Sua tia tenta algum tipo de consolo dizendo que “são os códigos sociais do mundo dos homens, querida. Fingimos que somos mais delicadas do que somos, e eles se fingem mais grosseiros”. Mas o contato com essa disparidade só aumenta o desejo de Bianca de experimentar a liberdade de "ser homem" e também sua revolta pela condição das mulheres. 

Estar na pele de Lorenzo vai se tornando algo viciante para Bianca e vestir a sua pele se torna algo constante durante as noites. Aos poucos, vai nascendo uma grande proximidade entre Lorenzo/Bianca e seu futuro marido. Assim, muitas descobertas sobre a personalidade de Giovani virão à tona, ao mesmo tempo que o reino em que vivem começa a passar por um grande momento de tensão, onde um líder religioso está moldando as mentes para pensamentos conservadores. Em suas pregações o religioso sempre salienta que a raiz de todo o mal que assola a sociedade está na natureza pecaminosa das mulheres. 

A forma como o quadrinho explora essa transformação gradual da sociedade é bastante interessante. É um retrato bem fiel de como o conservadorismo atua pela via do medo e da escolha da demonização de uma parcela da comunidade em específico, como as mulheres e os homossexuais. Aos poucos o que era apenas discurso de missa de domingo e que parecia não ultrapassar as paredes do templo, vai se transformando em mais cerceamento da liberdade e episódios de violência.

Até o dia em que o conservadorismo vira uma ameaça para a liberdade dos homens...

Pele de homem é um quadrinho genial, que consegue tratar de forma divertida sobre gênero, classe, sexualidade e religião. A personagem Bianca acaba acessando dois lados da moeda e percebendo como a opressão se apresenta (em níveis diferentes) para homens e mulheres. A HQ aborda sem restrições a desigualdade de gênero explorando uma violência de gênero que é histórica, e portanto, tão difícil de ser combatida.