A adoção com roteiro de Zidrou e desenhos de Arno Monin (Editora Nemo, 2022) é um quadrinho belga que trata de temas profundos de forma madura e um tanto singular. Um dos grandes focos da narrativa está na observação da construção dos afetos entre as personagens, e isso se dá de uma maneira nada convencional. Os autores conseguem tratar das relações de forma a questionar uma ideia concebida do dito “amor incondicional”, mostrando que relações são construídas dia após dia e sempre estarão acompanhadas de desencontros e pontos de tensão. Ao mesmo tempo que falam sobre a força dos laços afetivos, também rompem com a ideia romântica do amor, mostrando que o erro é uma das facetas da nossa individualidade e da nossa humanidade.


No centro da narrativa, acompanhamos uma família que está recebendo em seu lar uma pequena garota órfã peruana. A menina Qinaya foi uma das sobreviventes de um grande terremoto em Arequipa, no Peru, onde aparentemente perdeu toda sua família. Agora, junto a nova família, se vê diante da oportunidade de viver uma nova história na França.

Partindo desse cenário, parece que vamos embarcar em uma história extremamente sentimental sobre o processo transformador da adoção, mas não é isso que se desenrola no decorrer das páginas. O quadrinho fala sim sobre a adoção, mas a temática serve apenas como um ponto de suporte para embarcar por diversas outras questões que irão dissecar a forma como uma família se relaciona.

O quadrinho começa a explorar a relação da menina Qinaya com seu avô adotivo Gabriel. De cara, Gabriel se mostra resistente a estabelecer um contato mais profundo com Qinaya, simplesmente porque era contra a adoção e por não conseguir se enxergar como avô. Por vezes, ele demonstra não entender a necessidade de se adotar uma criança e trata-la, a partir dali, como um membro da família. Enquanto o restante dos familiares está dedicado a receber a menina da melhor forma, Gabriel observa e reflete sobre a situação. Ao fazer isso ele acaba por inconscientemente acessar uma radiografia de sua própria família.



De forma bastante sensível e também engraçada, o quadrinho vai mostrando como o dia a dia e alguns pequenos atos vão aproximando avô e neta. O texto de Zidrou é muito bem escrito e ele não economiza nas ironias, com umas sacadas engraçadas sobre a vida adulta. O personagem do avô é responsável pelas melhores frases da história, principalmente quando ele se junta a seu grupo de amigos, todos com nomes iniciados com a letra G e, portanto, apelidados como “os gegês”.



Gabriel tem um olhar muito prático para a vida e uma sinceridade que fica no limiar entre a grosseria e uma ironia cômica. Quando ele está junto de seus amigos, todos mais velhos como ele, o quadrinho explora alguns temas que tratam especificamente da vida adulta e principalmente da velhice. Os “gegês” olham para a vida e para algumas lembranças com um saudosismo gostoso e divertido que nos faz querer ser um membro daquele grupo.

O quadrinho fala sobre adoção, mas no decorrer da leitura percebemos que a história se dedica muito mais a falar sobre perdas e o reencontros entre pais e filhos. Todo o processo de aproximação de Qinaya leva Gabriel a pensar em sua postura como pai e isso leva a uma transformação dos personagens. Toda a trama do quadrinho deixa muito claro que as relações familiares vão para muito além do vínculo consanguíneo. Lá pelo meio da história um acontecimento inesperado abala as estruturas dessa família e Gabriel será uma importante bússola para que sua família recupere o rumo.