Sobre minha filha da Kim Hye-jin (Editora Fósforo, 2022) é um romance sul-coreano que expõe de forma sincera e direta as diversas camadas que permeiam uma relação entre mãe e filha. É um relato incômodo sobre um lado da maternidade ainda pouco discutido, mostrando que ser mãe nem sempre será algo envolto apenas no amor. O livro desembaça a vista dos leitores para devassar o íntimo de uma mãe que está lidando com a frustração de ver sua filha seguindo um caminho diferente daquele idealizado ao parir. Para além disso, essa mãe se vê diante de um processo de envelhecimento, que segundo a própria personagem nada mais é que o processo de ir abrindo mão das coisas que se gosta. Relações familiares e conflito geracional dão o tom desse romance corajoso.



Nosso ponto de vista da história se dá apenas através do olhar dessa mãe, que possui uma grande dificuldade em nomear tudo o que a aflige. Algumas personagens e alguns sentimentos simplesmente não são nomeados e isso diz muito sobre os conflitos internos que enfrenta. Ela trabalha como cuidadora de idosos em uma clínica e apesar de estar consciente sobre alguns maus tratos que ocorrem na instituição, sente dificuldade em nomear as tais violências. Ela também sabe que sua filha é uma mulher lésbica que está em um relacionamento de sete anos com uma mulher, mas tem dificuldade em olhar para essa relação com normalidade e qualquer menção a palavra homossexualidade soa como um ataque direto. Ela só se refere à namorada da filha como “aquela menina”.

Quando a filha precisa voltar para a casa da mãe por conta de uma grave crise financeira a casa materna se torna uma bomba relógio, pois ela se muda acompanhada de sua namorada. As duas jovens são muito engajadas politicamente e participam de movimentos sociais no âmbito da universidade. Através do olhar da mãe acompanhamos toda essa movimentação que a seus olhos não faz o menor sentido. O interessante é que apesar de toda a homofobia e o conservadorismo que fazem parte da criação dessa mulher, não deixamos de perceber algumas faíscas de admiração por essa filha que segunda a própria mãe “nega o mundo”.

Isso me incomoda tanto. Por que ela se recusa a ter uma vida normal? Por que ela nem tenta? Para que fui ter uma filha assim? Fiquei tão feliz quando ela nasceu. Eu ficava maravilhada e emocionada só de olhar para ela. Ela dormia e eu ficava olhando pra ela com o coração cheio desse sentimento que só podia ser definido como amor.

O amor é um tema essencial para essa história e vai para muito além da ideia romântica sobre o tema. É inegável que a personagem principal ama sua filha, mas esse amor acaba se manifestando juntamente com sonhos e expectativas que também fazem parte de uma construção social injusta, portanto, se torna um amor violento e que não respeita as individualidades. A mãe reflete o tempo inteiro sobre sua própria maternidade e sofre por conta de suas próprias idealizações.

Minha filha nasceu do meu ser. A partir do momento em que apareceu na minha vida, ela desfrutou de cuidados e proteção incondicionais. Mas agora age como se não tivesse nada a ver comigo. Como se tivesse vindo ao mundo sozinha, como se tivesse crescido e chegado à vida adulta por conta própria. Pondera e toma decisões sozinha e só me comunica depois. Muitas vezes nem isso. Coisas que ela não me conta, mas que eu sei. Coisas que finjo não saber. Todos os dias eu vejo essas coisas engrossando um rio silencioso e sem emoção que flui entre nós.
Como estamos falando de uma sociedade coreana que tem preceitos tradicionais em sua formação, discussões sobre opressão de gênero e diversidade sexual ainda caminham por um campo nebuloso, onde a norma e as aparências ditam as regras. A mãe da história viveu toda a sua vida dançando conforme a música e quando percebe que sua filha pertence a uma outra geração e experimenta outras formas de viver seus afetos o seu mundo entra em colapso.

Eu nasci, cresci e envelheci neste país, onde ignorar e guardar o silêncio a respeito do que acontece ao redor é considerado virtude e polidez. E por que passei a pensar nisso logo agora? Por que estou tão incomodada com essa situação, se nunca tive problemas em viver calada, fazendo as coisas como até agora fiz?

Acompanhar os pensamentos da mãe é angustiante. Por vezes sentimos um bolor se formar na garganta, pois Kim Hye-jin consegue transportar para sua escrita a visão de mundo dessa mulher e ela está desesperada e em silêncio. A intenção do livro não é estabelecer certo e errado, mas confrontar realidades distintas e esse confronto naturalmente se torna uma ode à liberdade. Enquanto a filha não abre mão das coisas em que acredita e nem do seu amor, sua mãe também não abre mão daquilo que considera o certo, que considera que seria a felicidade para sua filha, mas as duas já estão forjadas por sociedades completamente diferentes.

E naturalmente volto a pensar em minha filha. Chegamos aqui, nós duas, a esse momento, ela com trinta e tantos anos e eu com mais de sessenta. Como será o mundo no futuro? Esse mundo que não irei conhecer, mas que será vivido por ela? Será melhor que o de hoje? Será mais difícil?
Um outro ponto recorrente do livro e que nos ajuda a entender o estado psicológico da personagem é o tema da velhice. Essa questão é bastante explorada na obra, tanto pelo fato dessa mãe estar com mais de sessenta anos, tanto pelo fato dela trabalhar como cuidadora de idosos, onde acaba estabelecendo uma relação muito próxima com uma das idosas que está em estágio avançado de demência e em total abandono parental.

Como explicar que me vejo naquela mulher amarrada à cama, sem saber para onde está sendo levada? Como exprimir essa sensação tão nítida e explícita? Será que ela tem culpa de não ter ninguém com quem contar no mundo? Se penso assim é porque agora eu sei que não posso mais contar com a minha filha para mais nada? Será que eu também serei castigada como aquela mulher e terminarei minha vida assim, velha, largada e contando os dias para morrer sozinha? Será que é por isso que estou tentando fazer de tudo para impedir que isso aconteça?

De forma genial, Kim Hye-jin vai nos mostrando que mãe e filha têm muito mais em comum do que elas mesmas imaginam. As duas possuem um espírito de luta que se aflora quando são colocadas diante de algo que vai contra seus valores. Assim como a filha é incapaz de aceitar posicionamentos arbitrários e homofóbicos da universidade, a mãe se recusa a ficar quieta diante do descaso e da corrupção da clínica de repouso onde trabalha. Quando elas se juntam, em casa a noite, parecem peças incompatíveis de um tabuleiro, e o que não sabem é que no dia a dia, no enfrentamento do mundo externo estão de mãos dadas.