Paniricocrônicas: crônicas dos sonhos em tempos de pandemia do Caio Garrido (Editora Patuá, 2021) é um livro escrito durante a fase mais aguda da pandemia e do isolamento social. Caio, que também é psicanalista e realiza estudos sobre sonhos, olha detidamente para seus próprios sonhos e faz algumas possíveis interpretações. Os textos trazem questões que encaram de frente nosso medo, incredulidade e sensação de impotência durante esse período que além de colocar nossas vidas em risco, ainda nos colocou diante da violência das ações e dos pensamentos negacionistas. Paniricocrônicas casa a efemeridade dos sonhos com a racionalidade que se projeta em nossa vida e nos sonhos para fazer reflexões sobre o impacto da pandemia na vida cotidiana.


Com uma linguagem acessível a obra nos apresenta quase que um estudo sobre a temática dos sonhos e suas representações. Quem nunca teve um sonho extremamente real ou tão insano, a ponto de correr para o google e pesquisar seu significado em páginas aleatórias e por vezes nada confiáveis? Aqui estamos diante de um estudioso do tema, que olhando para o dia a dia consegue nos demonstrar como os sonhos são catalisadores das nossas vivências sociais e individuais.

Em meio à peste, entre terrores e traumas, a vida continua pulsando, assim como foi desde a primeira espécie nascida. O sonhar é um desses elementares fundamentos da vida. E dentro desse fenômeno (em que também se encontra nossa mente), que embora pareça uma unidade, que tenhamos uma mente individual, mais do que atravessados pelo outro, somos formados instante a instante por um caleidoscópio de forças, imagens, histórias e representações que vêm realmente dos outros. Tais forças mobilizam o sonhar de uma forma que ainda não compreendemos o suficiente – talvez estejamos longe de compreender.

Enquanto estávamos isolados em nossas casas, trabalhando de forma remota, impossibilitados de ver as pessoas mais próximas e aguardando o direito de vacinar, muitas das questões psicológicas e sociais que já faziam parte da nossa existência tomaram proporções maiores. Como não sabíamos a maneira de elaborar a vida em um contexto tão grave de pandemia, acabamos por projetar nossos medos e nossas frustrações das mais diversas formas e os sonhos, é claro, também se tornaram campo de elaboração da realidade.

Ao contrário deste modo em contrafluxo da vida, a pandemia exacerbou e escancarou a vida que não pudemos viver; levantou o véu das verdades que gostamos de deixar debaixo do tapete.

 


Caio Garrido organizou o livro de forma que acessamos primeiramente o relato de um de seus sonhos pessoais em uma página toda preta com letras brancas. O texto se apresenta assim como são os sonhos, as vezes meio fragmentado, fora de ordem, com pouca lógica e quase sempre desafiando os sentidos. Nas páginas seguintes o autor tece uma crônica que apresenta as possíveis interpretações para aquele sonho, que pode ter a relação com uma angústia, um sentimento ou um acontecimento que acaba por aflorar de forma alegórica e em forma de sonhos.

Em um dos sonhos relatados, Caio descreve uma cena em que ele está numa sala cheia de pessoas aguardando por tomar uma dose da vacina contra a covid. Ele se encontra sentado no chão e nu. Em um certo momento uma enfermeira se aproxima dele e remove uma camada de cera de ouvido de sua orelha. Na crônica em que ele analisa a mensagem desse sonho e que intitulou como “Direito à vacina” ele credita o ato de remover a cera do ouvido a uma abertura de canal de escuta. Achei essa passagem bem interessante, pois, diante de tamanha desinformação que viemos enfrentando nos últimos anos, com a era da pós verdade, as vezes escutar um discurso, pelo mais incoerente que seja, pode nos dar incrementos não só para entender porque o negacionista existe, como também para aumentar nossa possibilidade de rebater argumentos que não se baseiam nos fatos e na ciência.

As relações de poder presentes nas relações da política de governos autoritários com seus cidadãos – que não são tratados como tal – fazem aflorar afetos como humilhação, vergonha e medo. Afetos que podem ser considerados políticos. Se há vulnerabilidade, estamos propensos a sermos governados por nossos afetos. Pelo medo principalmente.

O autor utiliza mais de uma vez de um termo que acho muito importante para entendermos boa parte dos temas que o livro carrega: pandemia à brasileira. Quando paramos para pensar sobre os problemas que vieram com a covid e o isolamento social, percebemos que seria impossível o Brasil não ter se tornado um dos epicentros de disseminação do vírus, uma vez que somos governados por um projeto político genocida e negacionista. O nosso país, que já carregava desigualdades históricas, consequentemente sofreu um impacto maior com a pandemia, que escancarou ainda mais a nossa desigualdade social, o nosso racismo, e como o próprio autor diz, “nos deu uma outra perspectiva para entendermos o fenômeno de destruição chamado Bolsonaro.