Lady MacBeth do Distrito de Mtzensk do Nikolai Leskov (Editora 34, 2017) é uma novela de 1865 com uma força narrativa incrível. Leskov abre mão de floreios e vai direto ao ponto ao contar uma história que mostra como escolhas erradas podem se tornar uma avalanche e nos engolir. É uma narrativa que surpreende, exatamente pela época em que foi escrita, por focar na exploração do íntimo feminino perante uma rotina enfadonha, um casamento por conveniência e por retratar a força do desejo feminino por libertação. A obra é curta, mas tão bem escrita que saímos com a impressão de ter lido um romance de fôlego, devido à riqueza de construção dos personagens e as reviravoltas da trama.


O título da obra faz menção a Lady Mcbeth, uma das principais personagens da tragédia Macbeth, escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. Ela é a esposa do nobre escocês Macbeth que não poupa esforços e nem se preocupa com nenhum tipo de escrúpulos para que seu marido se torne rei. Catierina Lvovna Izmáilova, a protagonista da obra de Leskov, recebe o apelido de Lady Mcbeth do Distrito de Mtzensk justamente por não ter nenhum tipo de escrúpulos para alcançar seus objetivos. No primeiro parágrafo já somos informados que uma série de tragédias estão no cerne da história de Catierina.

De quando em quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual essa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chama-la Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.
Como era comum na época, Catierina Lvovna se casou com Zinóvi Boríssitch, um abastado comerciante rico da região e não foi por amor. Devido as demandas que seu marido possuía, ela passava a maior parte do tempo isolada em casa sem qualquer tipo de distração. Quando tinha companhia era apenas de seu insosso marido e de seu sogro, ambos já em idade mais avançada. Ao descrever a rotina da moça, Leskov demonstra a sua criatividade enquanto narrador e produz um texto que é quase um ensaio sobre o tédio. Enquanto narra o dia a dia da personagem, onde quase conseguimos tocar o tédio com as mãos, o texto acaba por também falar da condição das mulheres que nasciam com um roteiro pronto a seguir.

Era maçante a vida que Catierina lvovna ia vivendo na casa rica do sogro durante os cinco anos redondos ao lado de um marido seco; mas, como é de praxe, ninguém dava a mínima atenção ao seu tédio.
Lvovna era uma moça ainda jovem e aos poucos o excesso de marasmo e tédio foi se transformando em desejo. Tanto o desejo de liberdade, como o desejo de amor fazem com que Catierina permita uma aproximação de Serguiêi, um dos capatazes da propriedade da família. Catierina se rende aos encantos do homem, que é descrito como extremamente atraente e os dois se tornam amantes.

A partir daí vamos adentrando em uma narrativa chocante. O leitor não está preparado para os acontecimentos que vão se sucedendo como uma bola de neve e a trama se torna uma história de amor e violência nada previsível. Enquanto Catierina passa a fazer qualquer coisa pelo seu amante e para continuar vivendo a possibilidade de um amor onde realmente tenha desejo e entrega, Serguiêi parece estar disposto aos mesmos movimentos, mas com o objetivo de se tornar um grande comerciante.


A personalidade de Catierina é um dos pontos mais excitantes da obra. Ela começa como uma moça de origem humilde e obediente, que cumpre exatamente o papel que esperam dela, para em seguida explodir em uma personalidade fria, calculista e que não se arrepende de nenhum de seus atos. Em certo ponto da obra o narrador chega a descrever Catierina da seguinte maneira:

Aliás, para ela não existia a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma

A personagem é tão complexa que ao mesmo tempo em que nos fascina por seu temperamento explosivo e sua possibilidade de cometer crimes em nome de seus objetivos, ela também nos surpreende por sua inocência ao se deixar levar pelos gracejos de Serguiêi, que claramente não é uma figura de confiança.

Catierina comete atos odiosos durante todo o livro e ainda assim consegue conquistar a simpatia dos leitores. A gente se pega quase que justificando seus atos, talvez porque o levante perpetrado pela personagem funcione como uma metáfora, uma alegoria da libertação feminina. 

Lady MacBeth do Distrito de Mtzensk foi meu primeiro contato com Leskov e gostei muito de sua escrita. Seu texto é acessível e suas estratégias narrativas são de um verdadeiro contador de histórias, que sabe partir de elementos do cotidiano para nos prender em uma histórica rica em significados, como também em sua notável destreza em construir personagens complexos em poucas palavras.