Minha teogonia: trechos de uma tragédia urbana do Jordi Lucena (Chiado Books, 2021) é um livro com ares de auto ficção que desafia o leitor a acessar diferentes tipos de sensações. Esse desafio se apresenta pelos temas que a obra carrega e pela sua própria estrutura textual. Ao olhar para a cidade e sua selvageria, Jordi Lucena fala também sobre um caos do qual somos vítimas e responsáveis, uma vez que a cidade reflete exatamente o modelo de sociedade que construímos (conscientemente ou não). Trata também sobre um caos que é interno e quando paramos para observar o desfilar das tragédias urbanas encontramos a nós mesmos.
Tenho especial apreço por livros que olham para o cotidiano, para as coisas aparentemente comuns ou banais e as eleva a uma temática a ser discutida. Quase sempre um universo se abre. Jordi Lucena não só faz isso, como o faz com uma crueza necessária e com uma independência de filtros que faz a gente se arrepiar. O autor apresenta um livro que olha ao redor, olha para as pessoas e sua aparente despreocupação com censuras e o politicamente correto permitiram que o texto desenhasse muito bem nossas feridas.
Na previsão do tempo dizia:
hoje à tarde é sol
e de noite é caos.
Dentro do caos eu sou belo.
Muito se engana quem pensa que na crueza não é possível encontrar beleza. Seja em formato de poesia, de prosa, de um mini conto percebemos que Lucena sabe manusear as palavras. “Minha teogonia” não obedece a uma ordem específica ou cronológica e como o próprio título diz, as temáticas vão se desenrolando através de trechos, como se fossem fluxos de memória. Ao mesmo tempo que Jordi apresenta uma narrativa em formato de texto poético, em seguida pode partir para uma prosa de apenas uma página ou um texto curto que mais se assemelha a um conto.
Através desses trechos, contos, poesias e fluxos de pensamento o autor aborda a violência em suas diversas manifestações e os tipos de maneiras que encontramos de driblar um caos que nos parece inerente à própria existência. Jordi fala de amor e de falta de dinheiro, fala de vida e de morte, fala de encontros e desencontros, de amizade e de sexo.
Sinto-me um pouco desconfortável de estar na vida, de estar nesse mundo onde as pessoas vão embora de uma forma tão brutal, independente do tamanho de seu coração, ou do brilho bonito que sai de seus olhos.
O narrador do livro fala muito sobre tudo que o cerca, portanto, além de falar de si, acaba dizendo sobre tudo que observa e acaba exercendo influência sobre suas vivências. Essa característica somada a uma ideia de exploração do próprio pensamento transmite para a obra uma escrita que se apresenta desprovida de estereótipos. Jordi Lucena faz inúmeras provocações sobre o próprio ato de escrever e a visão que temos daquilo que é considerado arte.
A escrita de Lucena está mais voltada para a literatura marginal. Durante a leitura fica a impressão que seu afastamento do cânone literário é mais do que intencional. A sensação que a escrita do autor me trouxe é de que estamos, simplesmente, diante de algo que não necessariamente obedeceu a um projeto, mas diante de uma produção fiel a uma visão de mundo e estilo de vida que não se permitiria encaixar numa norma e que tem a expressão artística como norte. Assim como a literatura marginal nasce como uma forma de enfrentamento à repressão e exaltação de identidades invisibilizadas, acredito que a obra de Jordi Lucena faça parte da mesma natureza.
Uma das coisas mais ricas de “Minha Teogonia” é essa quase investigação sobre o que fazemos com aquilo que nos rodeia. E principalmente o que fazemos com aquilo que é triste, com aquilo que dói, que é violento, que nos faz mal. Quando falamos do não-dito é que realmente alcançamos possibilidades concretas de entender quem somos, onde estamos e onde iremos chegar.
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