Para os que ficam do Alex Andrade (Confraria do Vento, 2022) é um romance que nos coloca de frente para o que a vida pode se transformar se a gente se distrai vivendo a infelicidade. Ana se vê diante da responsabilidade de cuidar de seu pai que está com Alzheimer e tendo como cenário um apartamento onde colecionou momentos bons e também de violência, vamos percebendo as diversas formas de solidão que uma mente pode estabelecer como defesa contra as agruras da vida, sendo a pior delas o silêncio.



Praticamente enclausurada no apartamento da família e com a rotina pesada de cuidar de alguém com a saúde debilitada, Ana vai dando margem para que vários episódios traumáticos de sua vida aflorem. Relembra a distância emocional que tinha com sua mãe (agora falecida), as violências executadas por um de seus irmãos (completamente negligenciadas pelos pais) e um relacionamento que começou com promessas de felicidade e se transformou em uma relação abusiva com episódios de violência doméstica.

A narrativa se desenrola como um fluxo de pensamento. Em um parágrafo Ana pode estar descrevendo o seu primeiro encontro com aquele que viria a ser seu marido, para em seguida, sem qualquer aviso, partir para a descrição de uma de suas surras por um motivo extremamente banal. Essa forma de contar a história é um dos pontos mais ricos do livro. Além de navegarmos pela mente da narradora, vamos nos dando conta de a quantas anda o seu processo de adoecimento e como alguns acontecimentos deixaram marcas profundas.

Meu pai imóvel na cama, deito ao seu lado, toco no seu braço para ver se ainda vive, fico em silêncio profundo para ouvir a sua respiração, tenho presságios, medos, sustos bobos no meio da madrugada, e o tempo vai passando, o dia vai surgindo, a manhã nascendo

O livro possui várias discussões importantes e sem dúvida a condição das mulheres é a maior delas. Alex Andrade conseguiu tecer um texto realista sobre o peso que as mulheres carregam desde sempre e acredito que tenha utilizado de referências femininas bastante representativas em sua vida. Apesar da licença poética e ficcional concedida pela literatura enquanto arte, poderia ter suado um tanto quanto inverossímil ou até mesmo presunçoso uma voz masculina dizendo sobre dores tão pungentes e particulares, o que não é o caso de “Para os que ficam”. Existe muito respeito, cuidado e cumplicidade no texto do autor.

Entre muitas outras heranças do patriarcado e do machismo, temos de cara a repetição de algo muito comum na maioria das culturas. Quando um pai, uma mãe ou um familiar muito próximo adoece e precisa de cuidados, principalmente relacionados ao fim da vida e a velhice, quase sempre é uma mulher que fica a cargo dos cuidados. É como se existisse uma regra não dita de que cuidar é papel de mulher. No romance Ana cuida sozinha de seu pai, apesar de ter mais dois irmãos homens.

Eu tenho quarenta e sete anos e, se eu tiver sorte, sobrevivo como quem emerge de um mergulho malsucedido, se o mundo me permitir, onde quer que eu esteja, com as cores que o cenário apresentar, mesmo nos sonhos, mesmo que embriagada, ainda tragando a fumaça do cigarro para não embaçar a visão, talvez eu mereça, talvez o mundo conspire.

Ana é uma mulher que experimentou diversos tipos de violência e com o tempo foi criando caixas para se esconder. Em busca de algum tipo de conforto ou de identificação, a personagem não percebia que era exatamente na busca pelo outro que se encontrava suas prisões. Desde criança tinha a mania de se fechar no banheiro quando a ansiedade gritava, como uma forma de se isolar daquilo que a fazia mal. Ela dizia que “aquele era o único lugar onde poderia escapar de toda a dureza”. Quando adulta, em mais um momento de isolamento no banheiro é que ela terá umas das iluminações mais importantes de sua vida.

Assim como o se fechar no banheiro é uma metáfora poderosa da obra, a TV sempre ligada do apartamento também pode ser analisada de diversas maneiras. A TV que nunca parece dizer nada de importante está sempre ali, acesa, gerando ruídos, como se isso inserisse aquela casa em alguma sensação (irreal) de participação na vida que continua a correr. A televisão aparece como aquele elemento que não deixa esquecer que existe vida além daquelas paredes e para além de seu próprio sofrimento, ainda que seja uma vida através de um filtro e que Ana estivesse alheia a tudo que estava sendo dito.

Um outro ponto interessante é que o pai de Ana, entre um momento e outro de lucidez, está sempre perguntando: “Que horas é essa?”. Isso causa um desconforto para nós enquanto leitores e acredito que também para a personagem. “Que horas é essa?” quase sempre aparece de forma provocativa. É uma pergunta que pode ser lida como uma indagação do próprio pai sobre sua morte, a possibilidade de descanso. Uma outra interpretação possível seria uma provocação do pai sobre quando viria o momento de virada na história de sua filha, do tipo “Que horas é essa Ana?”, “não seria sua hora de viver e se libertar?”.

O silêncio tornou a nos rondar feito um cão nos espiando. Para que servem as horas se estamos perdidos no tempo?

É exatamente quando Ana começa a se libertar de seu estado frequente de torpor perante a dor e de se esconder atrás da embriaguez, que ela começa a enxergar as horas e também se lembra de que seu pai sempre dizia que “mergulhar era a solução para entender o desconhecido”.