Eva da Nara Vidal (Editora Todavia, 2022) é um livro arrebatador. Com uma escrita fluida e imersiva, Nara realiza um profundo estudo de personagem. Ao acompanharmos a história de Eva da infância à vida adulta, nos deparamos com temáticas muito fortes em relação à normalização da culpa feminina. Também somos apresentados a uma geração de mulheres privadas do prazer, do desejo e da liberdade que acabam por perpetuar a única maneira pela qual aprenderam ou são obrigadas a viver e a uma relação problemática entre mãe filha com consequências devastadoras para a individualidade e a psiquê da protagonista.
Na narrativa o nome Eva já se apresenta como algo que não deve ser dito. Em nenhum momento da obra o nome propriamente dito é pronunciado, apesar de sabermos o tempo todo ser o nome da personagem central. Esse é um dos pontos fantásticos da escrita de Nara Vidal.
A primeira decepção que eu dei à mãe foi meu nome. A única vez que o pai insistiu em falar mais alto. Quis um nome fácil para ajudar na alfabetização. A vó ficou para morrer de desgosto. A mãe fez novena para pedir perdão a Deus por um nome de filha tão mundano, um símbolo de pecado.
A partir do medo e do asco que o nome Eva passou a gerar em sua mãe e sua avó, a menina não teve mais escolha a não ser viver com o peso constante da pessoa e da mulher que ela poderia ou deveria ser. Nara não evoca de forma direta, não dá nome ao pecado original da personalidade bíblica – ela o faz transfigurado nas diversas formas com que o machismo se revela, na falta de liberdade feminina, na hipersexualização das mulheres, na relação de posse, na obrigatoriedade do recato, no olho inquisidor e sempre julgador da família e da sociedade. Tudo o que Eva faz e que de alguma forma se desalinha da idealização das mulheres da família é prontamente creditada ao demônio.
O diabo se apossou do meu corpo antes mesmo de eu nascer. Ao chamar meu nome, minha mãe se lembrava de pecado e maldição.
Assim, Eva não podia rir demais que isso poderia mobilizar uma espécie de sessão de descarrego. O tal medo do diabo e do que ele poderia fazer ao tomar totalmente a mente e o corpo de Eva transformou a relação entre mãe e filha em uma relação conflituosa onde cuidado e amor tomaram contornos de violência psicológica.
Eva não demonstra duvidar do amor de sua mãe e em grande parte da obra ela se entrega a ele com toda sua toxicidade e castração da individualidade. Quando a narrativa passa a nos mostrar quem é a Eva sem sua mãe, a Eva pós falecimento do controle total que a figura de sua mãe representava, encontramos uma mulher adoecida, sem rumo, com medo e refém de uma memória materna que continua a exercer poder de gente viva.
Minha mãe atrapalha meu caminho. Viva ou morta, esbarra em mim por onde tento avançar. Ela é uma fronteira, uma autoridade, uma recusa. Mesmo assim, eu a amei a vida inteira tão intensamente como se ela já tivesse morrido.
A vida de Eva se torna uma sucessão de pequenas tragédias, rompimentos, desencontros. Sua desordem mental se mostra na forma como lida com as relações amorosas e afetuosas, com o sexo e com a maternidade. O livro é dividido em três partes intituladas “superfície”, “profundo” e “fundo”. Considero “profundo” a parte mais difícil de ler. É onde mergulhamos no inconsciente de Eva.
Assistimos de camarote o desenrolar de algumas cenas em que Nara Vidal não define se estão realmente acontecendo ou se são frutos da mente adoecida da mulher. A gente lê e dói. A dor da personagem e a brutalidade dos rótulos justificam a cisão que a personagem estabelece com a realidade, como uma busca inconsciente por conforto.
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