Escute as feras da Nastassja Martin (Editora 34, 2022) é uma narrativa impactante, pois conta a história real de uma antropóloga que “lutou com um urso”. A própria Nastassja não gosta de dizer que foi atacada e em nenhum momento demoniza a figura do animal. Essa é uma das questões mais interessantes do livro. Por ter consciência da natureza do urso e um respeito pelo espaço que seria dele por direito, a pesquisadora lança mão do ódio por um animal irracional para falar sobre a natureza das coisas. Ela nos conta sobre o processo de refiguração após a desfiguração que vai muito além de sua reconstrução facial. O livro está estruturado como uma espécie de diário de campo, o que colabora com a imersão do leitor nas vivências da antropóloga.


Penso na minha história. No meu nome even, mátukha. No beijo do urso em meu rosto, nos seus dentes que se fecham em minha face, no meu maxilar que estala, no meu crânio que estala, na escuridão dentro da sua boca, no seu calor úmido e no seu hálito carregado, no aperto de seus dentes que se soltam, no meu urso que, bruscamente, inexplicavelmente, muda de opinião, seus dentes não serão os instrumentos de minha morte, ele não me engolirá.

Nastassja fazia parte de um grupo que estudava os povos do extremo norte da Sibéria, de uma floresta da Rússia, mais precisamente “em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. Um trabalho de campo árduo, mas que percebemos facilmente ser algo que a fazia se sentir útil e viva. Até que no dia 25 de agosto de 2015 o incidente acontece. Nastassja sai para caminhar para uma região um pouco mais distante de seu grupo e tem o encontro com um urso. Atendendo a sua natureza selvagem, o animal parte para cima de Nastassja, que também reage e de alguma forma consegue ferir o urso. Por algum motivo que nem mesmo ela sabe explicar, o urso não chega a matá-la e segue seu curso, deixando-a no chão sem parte de sua mandíbula.


Passei do estágio da dor, não sinto mais nada, mas continuo consciente, nem uma gota me escapa, estou lúcida para além da minha humanidade, separada do meu corpo e ainda habitando nele.


Para além de descrições bem detalhadas das dores que sentiu a antropóloga também nos transporta para um lugar pouco usual se pensarmos nas circunstâncias de um encontro entre espécies como esse. Nastassja nos leva para a posição de analisar diversas dualidade entre homem e animal, civilização e natureza, realidades e mitos, racionalidade e irracionalidade, medo e coragem. Existe uma mensagem muito forte sobre a relação dos humanos com os demais seres que habitam esse planeta, que muitas vezes pode ser de fascínio, mas também de violência e até aniquilação, principalmente diante de grandes predadores.

Em “Escute as feras” o mais importante não é a violência, não é o ataque, não é o sangue sob a neve e nem o rosto desfigurado de Nastassja, mas todo o processo de reflexão que ela entra sobre sua própria humanidade após o incidente. Na contramão disso tudo a sua volta volta-se para questões que pouco preocupam a Nastassja ou que nem mesmo faz sentido. A violência maior passa então a ser a vinda dos outros, que querem ver seu rosto a todo custo e que querem entender como uma moça estrangeira sobreviveu a um urso. “Meu maxilar se tornou o palco de uma guerra fria hospitalar franco-russa”.

Mesmo diante da dor, Nastassja não sai de seu lugar de antropóloga. Ela vê o seu encontro com o urso exatamente como uma simbologia do encontro com o outro. Se dentro de todas as suas vivências enquanto pesquisadora, ao estabelecer contato com povos que vivem em regiões mais afastadas ela via a missão da antropologia se manifestar, Nastassja também opta por classificar o seu encontro com o urso como um encontro com o outro, como um encontro com a natureza típica de um ser vivente de uma região. Ao passar pela escuridão de dentro da boca quente e úmida de um urso era como se ela passasse a fazer parte de algo.

Se o urso é um reflexo de mim mesma, que expressão simbólica dessa figura estou explorando com mais frequência?

O encontro de Nastassja com o urso deixa de ser um mero acidente de percurso para ser seu ponto de reflexão sobre a vida. A simbologia do urso passa a ser também uma simbologia de transformação e ressignificação de seu própria lugar no mundo, inclusive depois de conseguir sobreviver a esse encontro, e sobre as formas como é possível refletir, analisar e fazer um contraponto com sua própria essência após processos etnográficos tão intensos diante da cultura do outro. O incidente com o urso bate para a antropóloga como uma grande pergunta sobre como se manter sendo você mesmo após um encontro transformador com o outro ou até mesmo se isso seria realmente possível.