O Deus das Avencas de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2021) chega trazendo um outro formato de se contar histórias que o autor ainda não havia utilizado. Daniel é um escritor que sempre apostou mais nos romances e com essa publicação ele nos entrega três novelas que exploram um universo complexo com pitadas de realidade, fantasia e ficção científica. São narrativas duras que nos colocam diante de reflexões sobre a sociedade que criamos e seu declínio, sobre nossa relação com o planeta e a necessidade de se pensar sobre o amanhã. É um livro que encaixa perfeitamente com o momento que o Brasil e o mundo vem enfrentando, onde os impactos das desigualdades, do uso indiscriminado dos bens naturais, da manutenção da mais-valia e do mais valor definem quem pode, quem manda, quem obedece e até quem pode viver.

Nas três histórias que compõe o livro podemos encontrar diversos arcos que as interligam e ainda assim lermos de forma independente cada uma delas. Quando seguimos a ordem em que nos são apresentadas é possível perceber uma linha temporal (intencional ou não) que mostra o declínio em curso. Na novela "O Deus das Avencas" que dá título ao livro, um casal se fecha em casa enquanto a mulher que está grávida, aguarda o rompimento de sua bolsa. Durante muitas horas os dois se veem imersos na própria espera e junto à angústia e ansiedade da eminência de que tudo dê certo com o bebê, do lado de fora o Brasil se prepara para as eleições presidenciais que afogou o Brasil no mar de lama em que nos encontramos hoje. O casal progressista que espera o bebê, também espera pela possibilidade de uma virada e que o desfecho que até então parecia inevitável pudesse ser diferente.


Algo notável na novela é a construção de uma narrativa imersiva na espera pelo parto, de contração em contração, com uma riqueza de detalhes impressionante e reflexões que nos levam a pensar no nascimento como uma resposta à morte.

... o flagrante de um corpo e mente perfeitamente alinhados à experiência de estar viva, como uma dessas flores raras que desabrocham poucas horas por ano no coração de selvas remotas.

Também observamos de perto uma reflexão sobre a maternidade e a paternidade em um momento de tamanha incerteza. Chegamos a quase sentir na pele a preocupação, principalmente do pai, em ter um filho em um contexto histórico onde o fascismo bate à porta. A história é uma metáfora sobre o Brasil como país, sobre a espera por uma melhoria social que nunca vem. O jovem casal espera por um filho e também por uma resposta sobre o futuro da nação e sua frágil democracia. 


Em "Tóquio", segunda história do livro, deparamos com um futuro catastrófico através das vivências de um narrador solitário. As pessoas vivem nas cidades sitiadas que ainda conseguem algum tipo de sustentação, mesmo após um grande desastre ecológico e tecnológico que assolou o planeta. O mundo definitivamente já não é mais o mesmo e está infestado de doenças causadas pela destruição do ecossistema. Assim como o próprio narrador define: "um planeta assolado por doenças novas, violências antigas e tecnologias traiçoeiras."

Nos higienizamos na entrada, tivemos nossos chips de imunização escaneados, trocamos nossas máscaras por outras descartáveis e olhamos em volta. O bar tinha menos de dez metros quadrados.

Daniel Galera mostra um futuro sufocante onde os modos de viver foram completamente modificados. Além de uma atmosfera hostil o ser humano continua a criar opções, no caso dessa história apoiada na tecnologia, para fingir que nada mudou. Continua a buscar meios de fingir viver como se vivia antes sem encarar de frente que a mudança concreta passa pela revisão dos privilégios, pelo sentimento de comunidade e pela noção dos direitos humanos. Na história as grandes empresas e as pessoas estão em busca de uma forma de viver para sempre e para isso criam androides, onde é possível fazer uma espécie de backup da mente e suas vivências e transportar para outro corpo, que pode flertar com seres humanos reconhecíveis ou serem hospedadas em organismos e objetos. 

Nossa evolução enquanto animais sociais é parte da explicação. As características da nossa consciência potencializam o medo da solidão e da morte. Para não nos sentirmos sozinhos nem lembrar que a morte é uma possibilidade constante, somos capazes de encontrar companhia em qualquer organismo ou objeto.

 A questão da solidão e da convivência também parte de uma relação familiar. No caso de "Tóquio" está na relação conturbada entre mãe e filho. Nosso protagonista é um homem que aprendeu a viver longe e quase sem notícias de sua mãe, uma mulher forte e de temperamento nada convencional. Essa ausência trouxe muitas consequências para a vida de ambos e em certo momento da história essa discussão se intensifica e começa a permear as questões sobre vida, morte, individualidade e existência: "não existir é tão complicado e apavorante quanto existir."


Na terceira e última novela chamada "Bugônia" avançamos ainda mais no tempo. Apesar de se tratar de um futuro não especificado, alguns elementos nos levam a crer que muitos anos se passaram e que a humanidade sucumbiu. É uma história que retira o ser humano do topo da cadeia e o coloca em grau de igualdade com os animais, as plantas e o espaço em que faz sua morada. Essa se tornou a única opção, a única maneira de viver. Os sobreviventes vivem em um mundo pós apocalíptico onde a noção de comunidade é o que salva, pois juntos podem se defender das agruras de um mundo devastado e dos perigos que surgiram dessa nova realidade. Nesse mundo não só os humanos tiveram que se ressignificar de forma radical como também a natureza. 


Em "Bugônia" a ideia de comunidade também fez surgir novas possibilidades de maternidade e paternidade. Surgiram várias outras formas de ser pai e filho, pois todos sabem que a sua própria sobrevivência necessita da sobrevivência do outro. É como se depois de séculos de degradação a humanidade estivesse sendo reprogramada e tendo uma chance de recomeçar munida de outros valores, sendo um deles o fato de que somos seres dependentes um nos outros e que no fim das contas vamos precisar uns dos outros.  


A falta de respostas e as angústias sempre levam os escritores para a criação de histórias que retratam uma época e o livro "O Deus das Avencas" é mais um exemplo. Estamos passando um momento sem precedentes, pelo menos para essa geração. Estamos vivendo desafios pelos quais não estávamos preparados. A gente não sabe para onde vai, mas alguns escritores sabem que o segredo é continuar buscando por entendimento sobre as condições e os caminhos que nos levaram aonde chegamos, seja em forma de poesia, seja no formato de um romance, seja apostando na ficção científica, que diante do que está posto quase deixa de ser uma ficção. 


Em "O Deus das Avencas" Daniel Galera jogou parte de sua angústia com o momento histórico que vivemos. Ao começar apostando em uma história que se passa em um passado recente, dando um pulo para o que poderia ser algumas décadas a frente, para logo depois cair em um futuro apocalíptico com tempo não especificado, ele nos convida a pensar sobre os caminhos para o caos e que ele segue as etapas  de eminência de queda, a queda propriamente dita e uma possível redenção que poderá vir após uma quase morte. 


Os personagens caminham do seio familiar de "o deus das avencas", para um estudo de sociedade em "Tóquio" e em seguida para o vislumbre do mundo após o caos em "Bugônia." Essa expansão da história através da lupa é boa parte do exercício que precisamos fazer hoje para modificar nosso futuro, para que a colonização de Marte seja a título de ciência e não de sobrevivência.