KRAMP de María José Ferrada (Editora Moinhos, 2020) é um livro aclamado. Foi vencedor do Prêmio de Melhor Romance do Círculo de Críticos de Arte, do Prêmio de Melhores Obras do Ministério da Cultura e do Prêmio Municipal de Literatura em Santiago. Todos esses feitos foram alcançados nesse que foi a estreia de María Ferrada no gênero romance. Ferrada até então havia se dedicado mais aos livros infantis. Com uma escrita acessível, questionadora, irônica e poética a escritora nos insere na dinâmica de uma relação familiar nada convencional. 


"Unidos por um catálogo de produtos de serralheria da marca Kramp e viagens num Renault velho por estradas, povoados e cidades, uma filha cresce ao lado de seu pai, caixeiro-viajante, a aprender ensinamentos sobre o mundo e a vida. Da infância à adolescência, M narra seus aprendizados e o correr dos anos, até o evento que marca uma ruptura na família, acionando o dispositivo dos sintomas parentais e outras rupturas e mais questionamentos sobre o universo e as peças que não se encaixam, as dores desparafusadas que se acumulam, e o revelar das engrenagens discretas do afeto rangendo no crescer da sua maturidade."


Em Kramp, acessamos as memórias e a visão de mundo de uma menina de apenas 7 anos que só é nominada como M e diferente da grande maioria das histórias, a devoção e o afeto de uma filha perante o pai, aqui chamado D, assume outras formas e manifestações que desafiam o senso comum. É nítida a existência de um afastamento, de uma barreira entre os dois, que parece ter vínculo com o passado desse pai, e a forma que pai e filha encontram de se aproximarem e demonstrar afeto é fazendo com que um se insira no mundo do outro. O pai vive para o trabalho e a menina sabe que para fazer parte de seu mundo teria que fazer parte de sua rotina. Ela começa a trabalhar com ele sem conhecimento da mãe e isso, é claro, promove um afastamento da escola e um pacto entre os dois. 

E minha mãe, minha mãe era uma pessoa taciturna. Porém, agora que penso bem nisso, não era taciturna. Simplesmente estava triste e a tristeza não lhe permitia prestar atenção nos detalhes.


A menina M narra então a história desse ponto de vista. De uma menina que tem um pai cacheiro viajante, gozando de uma espécie de liberdade que permite com que ela veja e analise o mundo de outras maneiras, mesmo em plena efervescência da ditadura chilena. Em "Kramp" vemos uma espécie de rompimento com o método da escola que é muito simbólico, uma vez que viajando de vilarejo em vilarejo, tendo contato com diversos tipos de pessoas, situações e mais as demandas de "trabalho", nossa narradora acaba embarcando em um processo de conhecimento que também é muito válido - o conhecimento de mundo pela experimentação da vida. Percebi no livro um embate entre a teoria e a prática, entre a observação e a experimentação. 


A capa da edição brasileira foi muito perspicaz e corajosa ao jogar no mercado uma imagem que trás uma criança fumando. A imagem de uma criança fumando gera confusão e desconforto, mas também chama atenção para a temática do livro. Na história nossa narradora começa a fumar muito cedo, entre os sete e os oito anos, e essa era uma realidade ali pelos anos 80 onde se você não era fumante, era fumante passivo e não existiam campanhas anti fumo. O fato da garota fumar também serve para ambientar a história ali no Chile de Pinochet e no modelo de vida dos caixeiros viajante, onde o politicamente correto praticamente não existia. Para conseguir uma venda esses vendedores ambulantes faziam quase de tudo, inclusive criar narrativas tristes e não verdadeiras para tirar lucro de uma possível empatia. Fumar era uma das formas de M se igualar ao pai e aos homens, também caixeiros, que cruzavam seu caminho. O fumo da garota também representa um excesso de liberdade, que na infância tem seus pontos negativos. É uma liberdade que caminha lado a lado com a negligência. 


Mas o ponto focal do livro, é percebermos enquanto leitores, como a visão de mundo da menina vai se constituindo através da sua realidade. O pai e a filha vendiam pregos, martelos, serrotes, maçanetas, olhos mágicos da marca Kramp e tanto o catálogo de vendas, quanto as demandas de trabalho e as estratégias para se vender cada vez mais, vão servindo de instrumento para a garota entender o funcionamento das coisas. A maleta do pai deixa de ser apenas uma ferramenta e a menina passa a ver o mundo como uma grande engrenagem gerida pelo Grande Carpinteiro. 

O funcionamento dos ecossistemas, a lei de causa e efeito, a relatividade, "tudo pode ser entendido quando se olha para as gavetas de uma loja de ferragens", dissera D. "E também para serras e os martelos que ficam pendurados na parede", acrescenta.


De tanto escutar sobre os produtos Kramp, comecei a utilizá-los para entender o funcionamento do mundo, e assim, enquanto meus companheiros faziam poemas às árvores e ao sol de verão, eu homenageava olhos mágicos, alicates e serrotes.

A menina e seu pai, apesar de enfrentarem as mazelas e as debilidades do mundo e principalmente da vida de trabalhadores, parecem viver em um mundo paralelo, um mundo muito circunscrito a suas próprias regras. "As vendas, como todo trabalho, eram um sistema de sobrevivência. E, como a maioria desses sistemas, não era suficiente para que um ser humano sobrevivesse até o final do mês, e sim até mais ou menos o dia 15."


A menina que só tem contato com o pai e com os demais caixeiros viajantes e suas histórias mirabolantes, passa então a entre um cigarro e outro, uma vila e outra, a buscar sentido à existência.  M que é fascinada pela incursão do homem a Lua, passa a utilizar das suas regras de mundo como uma grande engrenagem de porcas e parafusos para pensar o universo. Esse fascínio também foi herdado do pai que acompanhou a transmissão do processo de alunissagem pela TV.

No momento em que D viu Neil Armstrong dar o primeiro passo na Lua, pensou que, com determinação e o traje adequado, tudo era possível.

Se tudo era possível era porque existia uma grande engrenagem que permitia isso. A partir desse ponto a grande sacada da narrativa é o fato de que nossa narradora vai começando a perceber que as engrenagens da vida também podem nos surpreender, que o mecanismo das coisas do mundo pode ser impreciso, que também precisam de manutenção para seu pleno funcionamento e que sempre vamos nos deparar com um parafuso mal colocado, com uma porca que perdeu a pressão e que "um único parafuso pode precipitar o fim do mundo." As referências aos objetos com que trabalha aparece o tempo todo, e por vezes, de forma muito poética, quando M compara as estrelas a uma infinidade de tachinhas, quando ela diz que a sua relação com o próprio pai é de 6 milímetros. 


Kramp faz um registro importante sobre a função da memória. Além de conhecermos fragmentos sobre o passado da própria família de M, nos deparamos também com fragmentos de acontecimentos e tragédias vinculadas à ditadura do Chile. Como o livro é narrado por uma criança as questões relacionadas à ditadura aparecem de forma mais sutil, mas que demarcam muito bem sobre a importância da memória, da própria fotografia e da resistência para manutenção da memória e para a possibilidade de se fazer justiça aos desaparecidos. Esse contexto pelos olhos de uma criança cria um universo interessante para a história. 


O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.


A narrativa em primeira pessoa da María José Ferrada é impecável. Partindo de uma vivência nada convencional de uma criança que nos mostra grandes conhecimentos sobre a vida e o universo, em paralelo ela nos mostra que a tônica da solidão, do afeto, do abandono e das referências não deixam de ser fundamentais para a formação de uma criança. O livro rompe com a idealização da infância, pois o ato de crescer e se ver parte de um todo é algo confuso e por vezes doloroso. É entendendo a dinâmica do sofrimento que criaremos crianças mais fortes para lidar com as pesadas engrenagens que sustentam o mundo.