Tudo que arde em minha garganta sem voz do Matheus Peleteiro (Edição do Autor, 2021) é um livro de poesias que tem muito de testemunho. Na obra o autor expõe em palavras muito do que guardamos dentro da gente e que nem sempre sabemos como expressar. Matheus olha para dentro de si e encontra tudo aquilo que é dito da realidade e que não foi digerido e, portanto, nos faz mal ou que foi tão bem digerido que precisa ser posto pra fora. Por outro lado, em algumas das poesias, o autor também se depara com alguns sentimentos que se diferem completamente da indignação, como se o lado torpe da vida quase que tivesse o poder de eliminar tudo aquilo que é digno de admiração, de lembrança, de exaltação e nos mantem na caminhada apesar de tudo. O livro é esse confronto entre o ardor e a refrescância que basicamente é a vida. A obra nos lembra de que ambos os sentimentos não merecem ficar apenas no engasgo.


É inegável como a arte é impactada em momentos de repressão e desgraça como o que vivemos hoje a nível de Brasil e de mundo. Não que o mundo tenha sido perfeito em algum momento, o fato é que vez ou outra vozes dissonantes de tudo aquilo que sonhamos que seria uma sociedade ideal emerge sabe-se lá de onde. A tragédia se veste sempre com as mesmas roupas, mas o nosso desejo de liberdade se inquieta e mostra suas diversas cores. A literatura, a música, o cinema, o teatro sempre reage diante do absurdo e "Tudo que arde em minha garganta sem voz" não poderia ter sido reeditado em momento mais adequado. Foi reconfortante me identificar com vários dos sentimentos que o texto carrega. O absurdo é perspicaz e faz com que a gente vez ou outra tenha a ilusão de que as coisas são assim mesmo e ponto final. Mas quando encontramos vozes que vibram em um tom parecido com o nosso um sorriso brota no rosto e a gente pensa: é isso, poesia não tem ponto final. 


"Tudo que arde em minha garganta sem voz" é um grito, um pedido de socorro, e também um convite para se pensar juntos sobre as realidades. É uma exaltação do amor em suas diversas roupagens, um convite para olhar para tudo aquilo que vale a pena e para os pequenos milagres que acontecem todos os dias diante do nosso nariz. É uma constatação de que um dia a dor vira grito e que o amor também merece seu palco assim que chega a garganta. 


São muito os momentos do livro em que Peleteiro fala sobre escrita, criação, leitura e inspiração. Isso é bem compreensível ao pensarmos na temática que o livro trás sobre a urgência e insurgência da voz. Todos esses aspectos são vistos lado a lado com a vida, com os fatos humanos e como a representação de tudo que nos faz ser quem somos e estar onde estamos. A obra não poderia abrir de forma mais significativa, com Matheus fazendo uma confissão aos leitores do porque ele precisa escrever: "escrevo porque preciso escrever." Ele escreve por que precisa colocar pra fora tudo que arde em sua garganta sem voz e que é confirmado mais a frente, ainda na mesma poesia, quando nos diz: "escrevo livros para que me livre das minhas ideias."


Algumas páginas a frente nos deparamos com mais um texto sobre a escrita. Em "Notas do autor" Peleteiro diz que "não escrevo o que sou/mas sou o que escrevo/ e um pouco mais." E algumas palavras a frente arremata: "e vivo na literatura as tragédias/ porque elas são importantes/ as tragégias/ os poemas/ e tudo o que tentamos dizer/ e nunca dizemos/ seja pelo engasgo/ ou pelo ardor."


No poema "Com amor" um dos trechos nos diz que "mas, por amor/ tudo vale. Inclusive o ato/ de escrever algo/ em que não acredita/ pelo simples fato/ de querer acreditar." É um fragmento que conversa de perto com nossa utopia e revela mais uma vez as palavras e a escrita como parte de uma projeção e construção daquilo que almejamos e que insistentemente não abrimos mão de crer. Em "Para ser um escritor" Matheus embarca na grande dicotomia onde vida e obra se entrelaçam e onde os escritores apresentam diversas formas de interpretar o nível em que a literatura se apresenta em suas vidas como parte de si e de suas vivências ou como um ofício. No caso desse poema, que pode ser ou não a maneira que Matheus encara essa questão, lemos que "para ser escritor/ você deve fazer da sua vida um ofício/e não da sua escrita."


O livro possui ainda diversas outras camadas, onde a escrita se debruça sobre a "Fé" em diversas instâncias, mas sem dúvida a que mais de destaca é a fé na vida e nas pessoas: "mas carrego comigo uma empatia/ que me faz acreditar no homem" e acredito que é essa mesma fé que move o amor e a indignação que arde na garganta do autor e dos leitores. 


Temos poemas que se dedicam a explorar a nossa própria formação enquanto indivíduos: "quando dizem que estou diferente e/ me olho no espelho/ percebo que não mudei/ apenas me encontrei em mim" e que brilhantemente fecha dizendo: "e a cada dia que se passa, me sinto mais parecido comigo." A auto exploração segue como no poema que diz: "com olheiras profundas/ ele é só mais um menino sozinho/ tentando desbravar o mundo." 


Os poemas também se debruçam sobre a incongruência de alguns fatos e pensamentos que movem a nossa sociedade: "se Jesus retornasse hoje/ seria condenado por cantar rap/ culpabilizado pela alta da inflação/ e responsabilizado pelas mortes/ além de/ hostilizado pela demora." Matheus olha com ironia para as desigualdades: "é tudo uma ironia divina/ o terceiro mundo tentando a vida no primeiro/ o primeiro mundo fazendo turismo no terceiro/." mostrando que "a desigualdade é apenas uma desculpa/para justificar o fracasso da humanidade", uma falsa constatação que promove a manutenção do status quo como se o mundo fosse destinado a ser assim como é. 


Com a mesma destreza com as palavra Peleteiro homenageia a vida e suas sutilezas, os sentimentos e as surpresas que nos mostram o que é estar vivo, se declara em amor romântico e se emociona ao falar de pai e mãe. "A melodia dos raios" é uma contemplação: "durante o dia/ sou cidadão/ à noite, poesia/ sou quem está/ do outro lado da janela/ durante as tempestades/ aplaudindo o trovão e/ apreciando a mais estrondosa/ melodia promovida pelos raios. 

quero a sorte de um amor tranquilo

com sabor de fruta ainda composta,

para que, todas as noites,

ele possa se decompor comigo


 "Tudo que arde em minha garganta sem voz" é tudo aquilo que também pode estar ardendo na sua, ou pelo menos deveria. Não é um livro pessimista, muito pelo contrário. Essa ideia de que indignar-se e mais do que isso, expor a sua indignação é algo pessimista, é só mais uma das estratagemas para não fazermos as manutenções necessárias para construirmos novas formas de viver. O interessante é que Matheus parte de dentro pra fora e ao fazer esse movimento descobre que dentro tem um mundo inteiro.