Enquanto os dentes (Editora Todavia, 2017) é o livro de estreia do Carlos Eduardo Pereira. O fato de estarmos diante da primeira publicação de um autor não necessariamente significa que o mesmo seja um escritor iniciante. É essa a sensação que fica após ler "Enquanto os dentes". Carlos faz uma literatura digna daqueles que já tem muita destreza com as palavras e tempos narrativos. Através de um texto curto, fluido e de ritmo contínuo, passamos a dividir nosso tempo com o personagem Antônio e suas reflexões e inquietações passam a ser também um pouco nossas. O livro é narrado em terceira pessoa, então é como se estivéssemos ali, assistindo uma peça sobre a vida de um personagem complexo, analítico e por vezes um pouco frio. O texto vai passeando por episódios da vida de Antônio sem a preocupação com uma linearidade. Um episódio pode mudar de um parágrafo para o outro, as vezes de uma frase para outra, e conseguimos captar quase que instantaneamente essa mudança de cena, como em um filme. Antônio atravessa diversos cenários da sua própria vida, enquanto atravessa cenários pertencentes a cidade.
O Antônio é um homem que cresceu em uma casa onde a palavra do pai era lei, tanto para ele como para a mãe e onde as possibilidades de diálogo eram bem limitadas. Diante de um pai que dominava o ambiente familiar com autoritarismo e violência não seria muito de se espantar que o mesmo também dominasse as escolhas de seu filho. É assim que Antônio começa a trilhar uma carreira na Escola Naval (que depois será trocada pelos caminhos da filosofia e das artes). O narrador vai nos apresentando a personalidade de Antônio sem floreios e sem filtros. Isso nos ajuda a perceber muitos dos traumas que assolam sua mente e que o levaram a se tornar um adulto regido por uma certa passividade que foi agravada após um acidente, um capotamento que o colocou em uma cadeira de rodas.
"Enquanto os dentes da boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida que havia construído tijolo a tijolo, só que agora não dá mais. Agora ele sabe que acabou."
Aos poucos a narrativa vai nos mostrando todas as camadas de Antônio e todas elas são apresentadas com muita calma. Vamos conhecendo as vivências de um homem negro, gay e cadeirante que sabe muito bem cada desafio que precisa enfrentar ao pensar nessas características. Ainda assim, o texto de "Enquanto os dentes" está longe de ser uma literatura panfletária e justamente por isso cumpre muito bem o seu papel de contar uma história diferente daquelas que já lemos muito por aí. A questão da homossexualidade por exemplo, aparece de uma forma tão inerente ao texto e ao personagem, com uma função de descrever uma das tantas características de Antônio, da mesma forma como se descreveria a cor dos olhos e dos cabelos.
Um dos pontos de destaque do livro é a forma como o autor nos apresenta ao mundo pelos olhos de uma pessoa cadeirante. Estamos diante de uma cidade que já ouvimos falar diversas vezes e que muito se assemelha a maioria das grandes capitais brasileiras, mas ao descrever a cidade diante dos desafios de mobilidade e de interação social acabamos por encontrar uma outra realidade. Com as limitações de sua condição física a forma de viver e circular pela cidade também muda e essa cidade que encontramos não é nada receptiva. O autor Carlos Alberto também é cadeirante, portanto conseguiu construir um texto que sabe muito bem o que diz, que fala sobre o processo de adequação que vai desde a nova maneira de tomar um banho, de dirigir, de circular pelas praças e demais espaços da cidade.
Durante o livro Antônio está em processo de mudança. Está deixando seu apartamento antigo para voltar para a casa dos pais. Enquanto faz sua travessia de balsa é como se ele entrasse em um transe de preparo para uma outra grande travessia que se tornou sua vida. Com a necessidade de reaprender a se locomover, a lidar com as pessoas ao seu redor e de entender o funcionamento de seu próprio corpo, Antônio passa a reviver toda sua história de vida até então.
Um cadeirante não consegue se pesar numa balança de farmácia, ou de consultório médico. O sujeito que usa uma cadeira de rodas precisa estar sempre se olhando no espelho, comparando seu reflexo com o do dia anterior: se a cara está mais larga, é porque ganhou peso; se está mais fina, é porque perdeu.
"Enquanto os dentes" não é um livro sobre superação, se é isso que possa parecer ao ler um pouco de sua sinopse. É um livro que faz a gente olhar para a própria vida e ver os diversos episódios que fizeram ser o que somos desfilando diante de nossos olhos. É uma história que nos pergunta nas entrelinhas quem somos e se percebemos onde é que moram as micro e macro violências que violentam nossas vidas. É uma narrativa que convoca a força e a importância de nossas memórias.
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