Onde estivestes de noite da Clarice Lispector (Editora Rocco, 1999) é um livro que reúne diversos contos da autora em uma linguagem que muitas vezes se assemelham às crônicas. Em "Onde estivestes de noite" encontramos mais uma vez a Clarice fazendo um uso cirúrgico do trabalho de escrita, mas aliado à exploração de sentimentos, reflexões e olhares que ultrapassam qualquer regra. Ela utiliza o suporte da palavra e da literatura com todas as possibilidades para falar de coisas tão íntimas, tão efêmeras e do fundo dos poros, que somente a literatura daria conta de representar. 


Em "Onde estivestes de noite" também encontramos um humor, uma ironia, uma forma mais divertida de embarcar nas reflexões já conhecidas da autora. Existem personagens com características que não chegam a beirar a caricatura, mas que representam a personificação dos sentimentos e das temáticas que Clarice pretende discutir. Como no conto "A procura de uma dignidade", onde a Sra. Jorge B. Xavier se vê diante de uma busca hilária e labiríntica onde ela mal parece o que procurar. 

A Sra. Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como encontrara. Por algum portão principal não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora ter entrado por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção em obras, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava dentro. 

E a Sra. Jorge vai seguindo por labirintos, a procura de algo onde o que parece importar é mais a jornada, o chegar, do que o objetivo em si. É um conto gostoso de ler, com ótimas sacadas e um ritmo que vai conduzindo o leitor para as demais histórias do livro, que por vezes se tornam bem psicodélicas. 


No conto "A partida do trem" que é o meu preferido do livro, vemos a construção de uma narrativa brilhante que explora os pensamentos de duas mulheres, a jovem Angela Pralini e a já idosa Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo. Elas não se conhecem, mas se sentam frente a frente, ambas a caminho de uma viagem que mudará o rumo de suas vidas. Enquanto a jovem foge de um amor tóxico, a senhora segue a caminho de uma vida de cuidados na casa de um filho, destino final de quem tem a idade muito avançada. 


As duas trocam poucas palavras, mas se analisam muito. Clarice constrói todo o conto explorando as reflexões de ambas, tanto em relação de uma pra outra, quanto da própria vida e dos motivos que as colocaram naquele trem. O conto vira um conflito de gerações e ao mesmo tempo mostra que certas questões são universais, independente do tempo. O texto faz reflexões interessantes sobre a velhice, sobre a solidão, sobre a condição da mulher principalmente em relação ao amor e o afeto familiar.

Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os outros, só a viam de relance. Velhice: momento supremo.

Clarice pega o cotidiano, a dita banalidade e o dia a dia nas mãos e aperta até a essência sair entre os dedos. Impossível ler Clarice sem transcender, sem acessar uma outra ordem, sem exercitar um novo olhar. "Onde estivestes de noite" pede por imersão e mais do que isso, que o leitor esteja aberto a captar as nuances da vida e a enxergar o que se esconde atrás do improvável.