Soteropolitanos (Edição do autor, 2020) é uma antologia de contos de escritoras e escritores da Bahia. O livro conta com a organização do Matheus Peleteiro que também é baiano e assina um dos contos. Além desse projeto, Matheus é autor de seis livros que transitam pelos gêneros do romance, conto e poesia. Peleteiro já publicou em parceria com editoras e também possui publicações lançadas de forma independente, como é o caso de Soteropolitanos que chega com participação de outros 27 escritores. Matheus Peleteiro chama atenção pela qualidade de seu trabalho literário e pela sua atuação em prol da democratização do acesso à leitura no que diz respeito à escrita onde "Soteropolitanos" representa mas um capítulo com seu chamado de vozes consagradas e iniciantes da Bahia para exaltar a literatura enquanto expressão criativa. Publicar de forma independente no Brasil é uma maneira de se posicionar contra uma realidade onde poucos falam e de mostrar a força da nossa literatura que floresce apesar da falta de incentivo e de políticas públicas de leitura. 


Preparava a minha coletânea de contos oriundos de histórias baseadas em relatos de acontecimentos que escutei pela cidade de Salvador, até então planejada para ser um dia publicada sob o título "Soteropolitanos", quando fui acometido pela ideia de que, por mais que aquelas histórias tivessem sido vivenciadas por sujeitos reais, algo de maior simbolismo urgia para carregar tal denominação.


Foi assim que Matheus resolveu colocar outros autores na roda de forma a construir uma obra que carregasse mais vozes e que pudesse contribuir com a criação de mais um espaço de divulgação da literatura contemporânea da Bahia.  Peleteiro salienta em seu texto de apresentação a impossibilidade de representar as inúmeras vozes que formam o cenário literário da Bahia, mas que essa é uma inciativa que ajuda a demonstrar a vastidão das narrativas e a diversidade de olhares dessas produções. Esse olhar para o próprio local de origem é algo interessante, pois ao mesmo tempo que abraça os seus faz um movimento de romper barreiras levando essas histórias para outros lugares.  


Através de contos curtos e profundos os autores apresentam uma diversidade de temas. Encontramos histórias sobre encontros e desencontros amorosos, afetividade, sexo, diversidade sexual, solidão, pandemia, violência, saúde mental, desigualdade social, perdas, religião, relação com a cidade, morte, entre outros. Mesmo aqueles contos que nos levam a caminhar por caminhos reais da famosa cidade de Salvador, optam por não nos levar a lugares comuns e ideias pré-concebidas do que é a Bahia ou do que é ser baiano, mostrando que existe uma infinidade de maneiras de ser, estar e viver em uma certa localidade. 


Em um dos contos intitulado "Só o amor une pessoas especiais" escrito pelo Edgard Abbehusen temos uma história que inicia dizendo: "Se Ana soubesse que, ao sair de casa, naquele dia, daria de cara com seu grande amor, capricharia mais no look". E Ana se encontra com um amor romântico em um conto que é também um amor pela cidade. Um amor sem filtros que consegue olhar para as mazelas que assolam as ruas - "negro, numa cidade de maioria negra, mas construída para brancos, maquiada para turistas, repleta de desafios e preconceitos."


A diversidade sexual aparece em mais de um conto como no "Contorno" de Jaisy Cardoso que relata o desalento da perda de um amor. Um rapaz assiste a partida do homem da sua vida sem poder fazer nada e por estar amarrado por uma das correntes que sustentam a homofobia. "Os anos se passaram e eu sabia que Leo era o amor da minha vida, mesmo me negando o direito de gritar isso ao mundo". E foi em Contorno que também descobri que lá em Salvador existe uma Avenida Contorno como aqui em Belo Horizonte. 


No conto "O sal da Terra" o Breno Fernandes transcreve de forma criativa e muito divertida uma conversa de telefone com um objetivo muito justo. Foi um conto que me fez rir pela forma realista que retrata uma conversa informal entre duas pessoa íntimas, relatando um episódio banal do ambiente de trabalho e que revela muito sobre nossas ações quando em grupo, quando confrontados, quando diante de nossas superstições. 


Em "A Falta" do Matheus Peleteiro as vivências de uma mulher em situação de rua são apresentadas de forma chocante e realista. É um conto que consegue nos fazer questionar sobre esse sistema que permite a existência de pessoas que simplesmente não tem onde morar e como essas pessoas precisam encontrar as próprias artimanhas para poderem continuar vivas. "É um negócio esquisito, mas quem vive em situação de rua sabe que é preciso incentivar a piedade alheia para não dormir de barriga vazia." 


Essa fuga dos estereótipos e dos clichês sobre a Bahia, esses fortes posicionamentos sobre a realidade, elevam a qualidade das narrativas e nos apresenta a autores com intenções que vão mais para a entrega e a confissão de uma criação literária genuína e muitas vezes confessional do que para lugares comuns e que poderiam ser considerados mais palatáveis ou vendáveis. Sentimos um gostinho do que os soteropolitanos tem a nos mostrar e ficamos com sede de mais. Na obra os paralelepípedos do Pelourinho e tantos outros locais conhecidos e desconhecidos de Salvador são apenas passarelas onde desfilam personagens reais que verdadeiramente são o alicerce da Soterópolis.