Meu ano de descanso e relaxamento da Otessa Moshfegh (Editora Todavia, 2019) é um livro ousado, irônico e sombrio que nos apresenta a uma personagem que decidiu hibernar por um ano. Em nenhum momento ficamos sabendo o nome dessa jovem que carrega consigo um vazio existencial tão grande a ponto de achar que a única solução para sua vida seria tirar um ano de descanso e relaxamento. O livro é uma alegoria sobre o peso do cotidiano, das convenções sociais, da vida cosmopolita, do excesso de informações, das relações, dos códigos e demais preceitos que somos obrigados a seguir desde sempre e que impactam a nossa saúde mental. 

Enquanto tentamos entender as motivações da personagem, vamos conhecendo alguns episódios de sua vida e de sua relação com a família de origem que nos dão algumas dicas sobre o possível ponto de partida de sua angústia e melancolia. Seu histórico de formação enquanto indivíduo soma mais tarde a uma completa apatia em relação ao trabalho e a degradação de uma relação amorosa tóxica. Para conseguir seu objetivo de hibernar a personagem acaba encontrando uma terapeuta que precisa de muita terapia e que embarca nessa viagem perigosa pelos entorpecentes. Essa "profissional" sem ética é a responsável pela nossa personagem conseguir acessar medicamentos perigosos e também por passagens estranhas e hilárias da obra. A dra. Tuttle é daquelas personagens que cativam o leitor apesar de sua inconsequência e onde a literatura utiliza do absurdo para nos tirar da zona de conforto.  Meu ano de descanso e relaxamento pode ser lido também como um livro que devassa a cultura da auto medicação e das drogas como fuga da realidade. 


Eu precisava da confiança inabalável da dra. Tuttle. Não que houvesse uma escassez de psiquiatras em Nova York, mas encontrar um que fosse tão esquisito e irresponsável quanto ela seria um desafio ambicioso demais para mim.


Quando Otessa lançou "Meu ano de descanso e relaxamento" ainda não podíamos imaginar que viveríamos um processo de isolamento social e ler a obra hoje nos leva a uma reflexão maior, pois sentimos na pele parte do que é relatado no livro - o isolamento social. Na maior parte do tempo a personagem está isolada em seu próprio apartamento e basicamente sua única companhia, ainda que de forma ocasional, é de sua amiga Reva. A personagem decidiu pelo seu próprio isolamento e seu apartamento se torna seu mundo particular e o cenário onde acompanharemos as suas dores e reflexões sobre a vida.  


Para poder dormir por um ano, essa mulher decide então abandonar seu ambiente de trabalho, colocar todas as suas contas no débito automático e a utilizar os seus serviços essenciais através de delivery. Só foi possível essa escolha de vida por conta de sua situação financeira favorável e de algumas aplicações. Ela é orfã de pai e mãe que herdou um bom dinheiro e que pode, portanto, garantir um certo conforto por alguns anos. A personagem encara sua decisão de forma muito pragmática e nem mesmo os estranhos efeitos colaterais das drogas a demove de seu objetivo: "Não que eu estivesse me suicidando. Na verdade era o oposto de um suicídio. Minha hibernação era uma medida de autopreservação. Eu achava que aquilo salvaria minha vida."


"Não consigo reconhecer nada que justifique minha decisão de hibernar. No começo, eu só queria uns tranquilizantes para abafar meus pensamentos e juízos, já que o bombardeio constante tornava difícil a tarefa de não odiar a tudo e a todos. Achava que a vida seria mais tolerável se meu cérebro demorasse um pouco mais para condenar o mundo ao meu redor."


As justificativas para tal decisão são um mistério para a protagonista da história e para nós leitores. De forma provocativa, Otessa Moshfegh faz questão de narrar o tempo todo o quanto sua personagem poderia ser considerada uma pessoa privilegiada, tanto pela sua situação financeira, quanto pela aparência. Essa estratégia narrativa vem como uma forma da gente embarcar a fundo em sua mente em busca de entendimento. Acredito que parte das respostas estão em traumas vividos na convivência com seus pais, que tinham sérios problemas de relacionamento conjugais e com a própria filha. Nossa personagem vivia em um ambiente de muita tensão e hostilidade - sentimentos que ela levou para a vida. 


Podemos partir também para um outro tema muito mais abrangente e que vem sendo discutido cada vez mais que é a depressão. Hoje sabemos que é uma doença e que uma pessoa em estado de tristeza pode alcançar níveis de melancolia que podem ocasionar em outros tipos de doenças e até levar a morte por suicídio. Quando Otessa nos apresenta uma personagem com tamanha densidade, ela nos coloca diante de algo que não sabemos lidar, e que em muitos casos recorremos a conclusões vazias e do senso comum para não enfrentar de frente algo que é da ordem da saúde mental. Acredito que em certo momento do livro, a maioria dos leitores passam a se importar menos com o porque da hibernação para começar a refletir sobre como uma mente adoece a ponto de rechaçar qualquer interação social. Começamos a temer pela vida da jovem. 


A personagem está tão certa de que sua hibernação pode trazer algo de positivo que ela defende a ideia de que depois desse ano de descanso e relaxamento suas células irão se refazer e ela poderá retomar sua vida como uma nova pessoa. Seus argumentos ainda que radicais conseguem beirar uma racionalidade que conquista o leitor e a gente se pega torcendo para que o processo tenha sucesso e até pensando se teríamos coragem de passar por algo parecido. 


Meu ano de descanso e relaxamento nos leva a muitos lugares. É um livro que nos convida a pensar sobre a nossa dificuldade em lidar com o sofrimento e sobre o que cada um dá conta de suportar. Algumas pessoas conseguem encarar o sofrimento com consciência analítica do que está vivendo para promover uma "reabilitação", enquanto outras cairão na apatia e na fuga como estratégias de defesa. A escrita de Otessa Moshfegh é sem filtros e através da voz de sua narradora entorpecida somos convencidos do quanto o mundo pode ser patético e insano. É um livro que é a cara desses tempos estranhos que estamos vivendo e que só seremos capazes de avaliar com mais precisão daqui a alguns anos.