Lâminas, da Dheyne de Souza (Editora Martelo, 2020) é um livro de poesias que abre cortes, ranhuras e sangra. Tem sangue que goteja, que desce em fino filete de dor de longa data, tem sangue que resvala como de tiro, de faca. Dheyne olha para a vida e se pergunta sobre o porque das coisas, mas sem pretensões de alcançar respostas definitivas, principalmente sobre aquilo que é absurdo porque é absurdo e cuja única solução é o fim, o corte com a  lâmina, a incisão. Ainda assim, Dheyne vem com suas lâminas nas pontinhas dos dedos e abre as feridas. A sensação ardida do corte nos acompanha por toda a leitura, como aqueles cortes que incomodam os nós dos dedos e as dobras da pele, que nos faz lembrar que estamos vivos e olhar para uma representação das tensões íntimas, coletivas e sociais. 


 que fazer com a cinza torta das madrugadas

acesas todas as teias sensos perdidos e a memória 

engasgada e o gosto falho alho e o desejo tão

maltrapilho quanto inverno seio e migalhas de

um orgulho que nem é mais próprio e comum

nem é mais sóbrio nem mais de onde recolher o

vão de quando avesso-fim o tempo muda a cor

da rua a ponte cega o verbo


e a esquina entorna uma lápide


Através de cortes e recortes, Dheyne nos apresenta seu olhar sobre fins e princípios, perdas e danos, visíveis e invisíveis, amor e desamor, íntimo e público, vida e morte. A autora olha pra dentro e nos diz sobre "veias que tempestam", olha para fora e nos diz sobre "esquinas que entornam lápides" que consequentemente fazemos relação com o abandono institucional que o nosso país vive em plena pandemia, ainda que o livro tenha sido escrito em 2019. Dheyne fala sobre "amores que perecem e que tem bala no ventre", sobre "a vida debruçada a expirar-me", sobre ser e estar no limiar. de algo É um livro que também se detêm a acontecimentos muito atuais para registrar seu canto de indignação, como no poema "Milhares de minutos de silêncio" onde a escritora escreve sobre o brutal assassinato de Marielle Franco "como se o instante em que marielle se foi pairasse neste minuto de silêncio". 


No poema "80 tiros" Dheyne conseguiu utilizar esse número 80 vezes dentro da estrutura do texto. É uma leitura que nos angustia e nos transporta para o peso e o absurdo que foi a disparada de 80 tiros em direção ao carro de uma família preta e para o cinismo e a desumanização daqueles que definiram o acontecido como um acidente. O poema materializa o absurdo dessa violência ao mostrar como oitenta é muito e nos desafia a tentar pensar nesses oitentas em ações corriqueiras do dia onde a própria repetição se torna grande e pesada por demais. O próprio ato de repetir o número durante as oitenta vezes em que ele aparece no poema abre a ferida daqueles que foram ensinados a normalizar a violência. A boca quase sangra. 


80 repita comigo oitenta não desce não sai

oitenta não dá oitenta tente fugir oitenta pro estado

oitenta tenta dizer tenta um murro na parede oitenta

vezes tenta oitenta vezes gritar tenta oitenta caracteres

oitenta não cabe não sai não engole


A experiência de ler a obra da Dheyne de Souza vai além da apreciação de um bom poema e chega também a uma intencionalidade estética e estrutural. A forma como ela elabora sua escrita faz com que o leitor encontre um ritmo de leitura guiado por uma sobreposição das letras que quase se assemelha a uma dança , a um mantra, a um canto. A autora experimenta quando escreve, as palavras não aparecem de forma aleatória e a cadência necessária vem num canto poema que será único para cada leitor. Na internet é possível encontrar vídeo onde a própria Dheyne declama seus poemas e é uma delícia perceber como o ritmo e a cadência soam na voz da própria autora.