O pai da menina morta de Tiago Ferro (Editora Todavia, 2018) narra a história de um pai lidando com a morte de sua filha de apenas oito anos. O livro surpreende e envolve o leitor por sua liberdade de narrativa e entrega do autor ao contar uma experiência pessoal e tão íntima. O pai da menina morta é uma espécie de diálogo sobre o luto e faz a gente refletir sobre vida e morte.


O pai da menina morta venceu o Prêmio Jabuti de 2019 como melhor romance e também o Prêmio São Paulo de Literatura. Além de ser um grande exemplo de boa narrativa e domínio da escrita literária, acredito que o livro também consegue se aproximar de forma muito especial de cada leitor. Apesar de estar tratando de um tema que para muitos é um grande tabu - o livro consegue criar identificação, pois, quem nunca perdeu alguém próximo e teve de lidar com a experiência do luto?

O livro suscita um diálogo interessante sobre as formas de encarar o luto. Nosso narrador acabou lidando de diversas formas com a dor de perder uma filha. Procurou por ajuda terapêutica, espiritual, medicinal e fez algo muito interessante que foi a revisitação de diversas experiências pessoais. Alguns desses fatos relacionavam-se diretamente com a questão da perda, mas não necessariamente foram as principais vivências revisitadas.

Acompanhamos diversos episódios da vida de Tiago Ferro relacionados à infância, adolescência, vida adulta, carreira, amores, sexo, sociedade. É como se para tentar entender a morte, Tiago se jogasse de cabeça na vida. A escrita do livro nos dá a impressão de que apenas entendendo o que é viver, podemos mensurar minimamente o que é a morte e seus impactos na vida de quem fica.


Tiago Ferro questiona o silêncio e para questionar o silêncio nada como ser ouvido. Durante todo o livro o autor faz confissões, mas também desenha cenários hipotéticos e situações ilusórias e até mesmo estranhas para botar pra fora o que passa em sua mente. O título "O pai da menina morta" ilustra bem como o próprio autor se sente e em uma das passagens Tiago diz "quando me esqueço da dor, eu me afasto da Minha Filha". Essa afirmação acaba por colocar o estar em luto como característica da sua personalidade a partir de então. O título também pode ser entendido como uma forte alusão a como ele passa a ser visto por todos após a morte da menina, como um estigma, uma marca permanente da dor.

"Minha filha deixa seus pais sem chão, pela inversão da lei da natureza que os obriga a sepultar nesta sexta a menina de oito anos, às 11h no Cemitério da Lapa, na zona oeste de SP."

Em seus capítulos na maioria breves e sem rodeios o autor conversa conosco que estamos lendo e também com pais que também perderam seus filhos. O tom da narrativa nunca é de extrema melancolia, de autocomiseração nem autopiedade - é o tempo todo um exercício de entendimento que tenha ao menos o poder de tornar a dor explicável.

O pai da menina morta é um livro que nos tira do lugar. Impossível sair impassível dessa experiência de leitura que nos faz olhar de frente na cara da morte, para a iminência de nunca mais poder ver alguém que é importante em nossa vida, de precisar olhar para o vazio e enfrentar a ausência.

Não deu tempo de levar minha filha para Paris, para as praias do Nordeste, para mergulhar em Bonito. Não deu tempo de tomar com ela um copo de cerveja e uma taça de vinho. Não deu tempo de conversar com ela sobre sexo, menstruação, camisinha e Aids. Não deu tempo de discutir o Dom Casmurro. Não deu tempo de ouvir com ela, na sequência, as três versões da melhor canção do século 20, "Layla", para depois concluir que as três são igualmente geniais: a original, a acústica e a gravada ao vivo com a banda do Wynton Marsalis. Não deu tempo de ela andar ao meu lado no banco da frente do carro. Não deu tempo de parabenizá-la por ter entrado na História, na Arquitetura, na Medicina, por ter decidido não fazer faculdade e ter largado tudo para ir morar em uma comunidade em Piracanga. Não deu tempo de brigar com ela porque ela estava se comportando como todo e qualquer adolescente. Não deu tempo de chorar sozinho no banheiro depois de ter ido visitar o primeiro apartamento dela. Não deu tempo de ver mês a mês a barriga dela crescendo. Não deu tempo de contar pra ela que o meu médico havia dito que o melhor mesmo era a cirurgia, a quimioterapia acabaria comigo. Não deu tempo de vê-la chorar de dor e de raiva. Não deu tempo de ter que enfrentar uma balada barulhenta, mas naquele ano ela e a irmã decidiram comemorar o aniversário juntas. Não deu tempo de ver o primeiro fio de cabelo branco surgir na cabeça dela. Não deu tempo de ela me tratar como uma criança."