Espantos para uso diário de Mário Baggio (Editora Coralina, 2019) é um livro de contos que convida o leitor a olhar. Acontece que para olhar é necessário ver e isso tem o seu preço. A escrita de Mário Baggio faz a gente se aproximar do dito banal e olhar a verdadeira natureza de alguns acontecimentos, de algumas circunstâncias, de algumas dores. É uma metáfora feroz sobre o modelo de sociedade que está posto visto por um raio-x. São espantos que você pode tomar de uma dose ou receber pequenas aplicações diárias.
Os contos são curtos e muito incisivos no que se propõe a explorar. Não faz rodeios para explicitar o absurdo e a violência que mora nas pequenas coisas, nos detalhes, nos atos corriqueiros, nas regras, no conceito de família, na ideia de progresso, no amor, na religião, no sexo, na condição da mulher, no desejo de vingança, no acostumar-se a ser ou estar, na morte e na vida.
Mário Baggio faz um jogo textual interessante em muitos dos contos ao escancarar dubiedades, ao chocar realidades e interpretações distintas. Um objeto que descreveria perfeitamente o universo do livro (além de uma radiografia) seria uma pilha. Sim, estou falando do dispositivo de produção de corrente elétrica com seu lado positivo e negativo. Um exemplo dessa relação que também pode ser interpretada como lado A e lado B é o incrível conto chamado "Invenções".
Ele narra a chegada do primeiro homem à Terra. Esse homem queria descansar e inventou a cadeira. Depois sentiu necessidade de descansar os cotovelos e inventou a mesa. Incomodado com o vento e a chuva inventou a casa. Até que surge um novo habitante a sua porta e pede abrigo. Enquanto conversavam, o homem que deu abrigo explicava suas invenções reclamando do vento, da chuva, dos trovões e o segundo homem fica com vergonha de dizer que ele inventara o vento e a chuva porque de onde vem o o sol era tão quente que queimava sua pele. Que inventou vento e chuva para tentar se refrescar de um verão que parecia eterno e também inventou o trovão e seu barulho para acabar com o silêncio desolador de quem anda sozinho.
Mário nos coloca em uma narrativa absurda de incômodo ou violência, e pode logo em seguida apresentar uma outra personagem que depende daquela situação para viver, ou conseguiu encontrar o lado positivo da mesma e que até mesmo se encontra em estado de total ignorância de onde aquela situação a levou. Em muitos casos uma violência é pura e simplesmente uma violência que deve ser combatida - e há exemplos disso no livro - como também pode ser um dos nossos polos complementares, o nosso positivo/negativo da pilha e que portanto, faz parte de quem somos.
O livro de Baggio utiliza de uma ironia ácida e que também pode ser engraçada, mas sempre dotada de um sofrimento que está presente nas muitas formas de se relacionar, seja socialmente, amorosamente e muito comuns em relações de poder, onde medo é ferramenta de domínio e estratégia para garantir "ordem". Alguns contos são bem palpáveis de tão verdadeiros, enquanto outros flertam com a distopia para continuar falando do absurdo.
Espantos para uso diário poderia ser o nome de um jornal televisivo que por algum motivo escolhera a literatura como linguagem, que aprendeu a olhar e a pensar, mas que acima de tudo percebeu quem é que deve pagar a conta por tanto caos. É um convite para pensarmos a sociedade e também para pensarmos sobre nós mesmos. A capa da publicação e a imagem que antecede cada capítulo utiliza de vinhetas que representam uma chapa de raio-x e é uma representação genial para o que encontramos no livro. O raio-x além de representar o conhecimento do âmago das coisas, também remete ao fato de que mesmo diante de uma verdade descortinada, acima de tudo é preciso aprender a ler o que está posto. Uma chapa de raio-x para quem não a atende é apenas um amontoado de nada.
Espantos para uso diário de Mário Baggio é um livro de contos que convida o leitor a pensar. E pensar dói. Principalmente quando somos instigados a nos perguntar o que não deveria estar naquela chapa de raio-x ou qual o lado da pilha que rege as nossas vidas.
- Mário Baggio também é autor de mais dois livros de contos: A (extra)ordinária vida real (2016) e A mãe e o filho da mãe e outros contos (2017). Desde 2014 mantém o blog Homem de Palavra (www.homemdepalavra.com.br)
Os contos são curtos e muito incisivos no que se propõe a explorar. Não faz rodeios para explicitar o absurdo e a violência que mora nas pequenas coisas, nos detalhes, nos atos corriqueiros, nas regras, no conceito de família, na ideia de progresso, no amor, na religião, no sexo, na condição da mulher, no desejo de vingança, no acostumar-se a ser ou estar, na morte e na vida.
Mário Baggio faz um jogo textual interessante em muitos dos contos ao escancarar dubiedades, ao chocar realidades e interpretações distintas. Um objeto que descreveria perfeitamente o universo do livro (além de uma radiografia) seria uma pilha. Sim, estou falando do dispositivo de produção de corrente elétrica com seu lado positivo e negativo. Um exemplo dessa relação que também pode ser interpretada como lado A e lado B é o incrível conto chamado "Invenções".
Ele narra a chegada do primeiro homem à Terra. Esse homem queria descansar e inventou a cadeira. Depois sentiu necessidade de descansar os cotovelos e inventou a mesa. Incomodado com o vento e a chuva inventou a casa. Até que surge um novo habitante a sua porta e pede abrigo. Enquanto conversavam, o homem que deu abrigo explicava suas invenções reclamando do vento, da chuva, dos trovões e o segundo homem fica com vergonha de dizer que ele inventara o vento e a chuva porque de onde vem o o sol era tão quente que queimava sua pele. Que inventou vento e chuva para tentar se refrescar de um verão que parecia eterno e também inventou o trovão e seu barulho para acabar com o silêncio desolador de quem anda sozinho.
Mário nos coloca em uma narrativa absurda de incômodo ou violência, e pode logo em seguida apresentar uma outra personagem que depende daquela situação para viver, ou conseguiu encontrar o lado positivo da mesma e que até mesmo se encontra em estado de total ignorância de onde aquela situação a levou. Em muitos casos uma violência é pura e simplesmente uma violência que deve ser combatida - e há exemplos disso no livro - como também pode ser um dos nossos polos complementares, o nosso positivo/negativo da pilha e que portanto, faz parte de quem somos.
O livro de Baggio utiliza de uma ironia ácida e que também pode ser engraçada, mas sempre dotada de um sofrimento que está presente nas muitas formas de se relacionar, seja socialmente, amorosamente e muito comuns em relações de poder, onde medo é ferramenta de domínio e estratégia para garantir "ordem". Alguns contos são bem palpáveis de tão verdadeiros, enquanto outros flertam com a distopia para continuar falando do absurdo.
Espantos para uso diário poderia ser o nome de um jornal televisivo que por algum motivo escolhera a literatura como linguagem, que aprendeu a olhar e a pensar, mas que acima de tudo percebeu quem é que deve pagar a conta por tanto caos. É um convite para pensarmos a sociedade e também para pensarmos sobre nós mesmos. A capa da publicação e a imagem que antecede cada capítulo utiliza de vinhetas que representam uma chapa de raio-x e é uma representação genial para o que encontramos no livro. O raio-x além de representar o conhecimento do âmago das coisas, também remete ao fato de que mesmo diante de uma verdade descortinada, acima de tudo é preciso aprender a ler o que está posto. Uma chapa de raio-x para quem não a atende é apenas um amontoado de nada.
Espantos para uso diário de Mário Baggio é um livro de contos que convida o leitor a pensar. E pensar dói. Principalmente quando somos instigados a nos perguntar o que não deveria estar naquela chapa de raio-x ou qual o lado da pilha que rege as nossas vidas.
- Mário Baggio também é autor de mais dois livros de contos: A (extra)ordinária vida real (2016) e A mãe e o filho da mãe e outros contos (2017). Desde 2014 mantém o blog Homem de Palavra (www.homemdepalavra.com.br)
Fiquei muito curioso pra ler esse livro agora. Ótima resenha como sempre!
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