A velocidade da luz de Javier Cercas (TAG Experiências Literárias, 2018) foi lançado em parceria com a Editora Biblioteca Azul e enviado no kit literário de janeiro de 2018 da TAG Curadoria como indicação do grande escritor João Anzanello Carrascoza. Foi mais uma oportunidade de me aproximar da literatura espanhola e mais um exemplo de obra inesquecível em minha jornada enquanto leitor.


A velocidade da luz é um romance que conta a história de dois homens, que por uma ocasião da vida, acabam se tornando grandes amigos. São pessoas de personalidades completamente diferentes e que se encontram em uma universidade após terem que dividir uma sala por um período no quarto andar do Foreign Languages Building, onde nosso narrador dará aulas espanhol. O livro irá narrar a potência desse encontro na vida de ambos e as relações paralelas que surgem a partir daí. Nas primeiras palavras do romance, mais precisamente em seu primeiro parágrafo, Javier Cercas já nos prepara para essa história que domina as nuances de um bom romance:

Hoje eu levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, e clandestina, e invisível, porém mais verdadeira que uma vida de verdade. Mas eu ainda era eu quando conheci Rodney Falk. Isso foi há muito tempo e foi em Urbana, uma cidade do Meio-Oeste americano onde passei dois anos no final dos anos 80. A verdade é que, sempre que me pergunto por que fui parar justo lá, digo a mim mesmo que fui parar justo lá como poderia ter ido parar em qualquer outro lugar. Vou contar por que, em vez de ir parar em qualquer outro lugar, fui parar justo lá.


E um dos motivos que levaram nosso protagonista a ir da Espanha para os Estados Unidos, foi uma grande ânsia de viver novas aventuras e poder se dedicar ao sonho de ser um escritor. O protagonista desta história, que nunca sabemos seu nome, e isso acontece com uma destreza tão interessante na escrita de Cercas, que a gente custa a perceber esse detalhe. A falta de nome da personagem não interfere no processo de conhecimento de sua história e de suas motivações e essa ausência de nome fará todo o sentido na conclusão da história.

Além  do nosso narrador personagem, a pessoa que mais iremos conhecer a fundo na trama é o excêntrico Rodney Falk. Ele é caracterizado como um homem grande, corpulento, com um andar meio bamboleante como se tivesse tido uma leve deficiência em uma das pernas. É uma pessoa muito introspectiva e que evita relação próxima com outras pessoas e por conta disso as pessoas o evitam. Ninguém sabe muita coisa sobre Rodney a não ser que ele esteve na guerra do Vietnã - outro fato que Rodney não conta detalhes.

À primeira vista, Rodney tinha a aparência cândida, indiferente e anacrônica daqueles hippies dos anos 60 que não quiseram, ou não puderam, ou não souberam se adaptar ao alegre cinismo nos anos 80, como se, à força ou por vontade própria, tivessem parado no acostamento para não atrapalhar o avanço triunfal da história."

De forma muito natural nosso narrador irá se aproximar de Rodney e para surpresa de todos irão se tornar amigos. Essa amizade irá render encontros semanais em um bar e café da cidade chamado Treno's - um local frequentado por estudantes próximo da universidade que trabalham. O Treno's será o palco onde os dois passam a conversar sobre muitas coisas, sendo quase nada sobre a vida pessoal de Rodney Falk e muito sobre escritores, livros e literatura. 

O viés literário dessa obra é encantador. Lemos diálogos inspiradores sobre experiências de leitura, quando os amigos relatam suas preferências e opiniões sobre diversos livros, como também saímos extasiados dos diálogos sobre qualidade de narrativas, processos de criação, características de uma boa obra, entre outros assuntos. Temos nosso narrador, que é um escritor em formação e o Rodney Falk que é um leitor voraz e experiente apaixonado por Hemingway. As dicas e provocações que Rodney lança nessas conversas para o amigo escritor são responsáveis pelos melhores momentos do livro com trechos geniais como este a seguir:

Rodney também não parecia muito interessado no que eu estava contando ou pretendia contar no meu livro; o que lhe interessava, sim, era o que eu ia deixar de contar. "Num romance, o que não se conta é sempre mais importante do que aquilo que se conta", afirmou em outra ocasião. "Quero dizer que os silêncios são mais eloquentes do que as palavras, e que a arte do narrador consiste em saber silenciar a tempo: por isso, no fundo, a melhor maneira de contar uma história é não contá-la."
Mais do que um romance com suas intenções de criar um universo simbólico para a gente entrar, A velocidade da luz é também um romance sobre o poder da literatura. Daquela literatura que possui todos os ingredientes para se tornar universal e atemporal. Faz uma discussão muito interessante sobre o poder da fama sobre um escritor e até onde a ética precisa ser preservada ou não na escrita de uma obra literária.

Em certo momento da trama Rodney desaparece sem deixar rastros e esse se torna um dos grandes mistérios que ronda a história, juntamente com as vivências de Rodney no Vietnã. Seu amigo acredita que para conhecer mais sobre Rodney será preciso descortinar esse episódio de sua vida, uma vez que sabemos o potencial de uma guerra para a destruição psicológica de quem a viveu. Nosso narrador personagem embarca numa busca onde ao descobrir detalhes da vida de Rodney acabará esbarrando também consigo mesmo.

As partes da obra onde a guerra do Vietnã é retratada, aborda sem medo o quanto uma guerra pode ser estúpida e como os soldados acabam por se submeter a uma realidade que eles sabem não ter volta, pois ganhando ou perdendo as sequelas que ficam são irreversíveis.

Entendeu ou imaginou que nesta guerra reinava uma falta absoluta de ordem, de sentido ou de estrutura, que seus soldados careciam de um propósito ou de uma direção definida, e que portanto nunca se atingia objetivo algum, não se ganhava nem se perdia nada, não havia um avanço que pudesse ser medido, nem sequer a  mais remota possibilidade, nem se diga de glória, mas de dignidade para quem nela lutava. Uma guerra em que reinava toda a dor de todas as guerras, mas na qual não cabia nem a mais mínima possibilidade de redenção, ou de grandeza, ou de decência que cabe em todas as guerras.

Javier Cercas irá introduzir os leitores em uma história que possui muitas nuances - onde os segredos e mistérios estão postos, onde cada capítulo é uma camada importante para um clímax de tirar o fôlego, onde a busca por uma verdade mesmo que inventada irá ser fio condutor e estrutura. O livro tem um dos melhores capítulos de conclusão de uma história que já li. A gente fecha o livro testemunhando algo que viu no início e completamente satisfeitos com o que foi construído pelo Cercas para seus leitores.