Pai de menino de Felipe Gomes (Editora Patuá, 2023) é o segundo livro de poesias do autor. Ao longo dos 24 poemas, Felipe nos leva pela mão por quatro seções intituladas: nasce, cresce, morre e reproduz. Assim como o número de poemas, que têm uma intencionalidade quando se trata das vivências de um homem gay, Felipe também brinca com alguns paradigmas e ironiza estereótipos, demonstrando como a ressignificação dos modos de se viver e de algumas convenções sociais pode ser o caminho mais viável para se viver com dignidade.


O primeiro poema, um dos meus preferidos, abre como um universo, através de “um montículo de pó de tempo” e o que ele tem de despertar, também tem de expansão. É o ocaso como uma espécie de mundo que nasce para expandir, independente do nosso desejo. É pó e tempo como lembrança de que não são as horas que importam, mas sim o rito que prova nossa existência.

Apesar de não ser o texto de abertura do livro, a leitura do poema “tarde” fez uma radiografia da obra para mim. Digo para mim, partindo do pensamento de que é impossível uma mesma pessoa ler um mesmo livro, ainda que estejam diante de uma mesma edição, capa, número de páginas, papel e diagramação. Quando se trata de poesia, essa autonomia de interpretação e de apreensão do que se lê alcança um outro patamar.


não vou caber
prender o ar
cobrir minhas frestas
está quase
na hora da
festa
e esta
é minha única
roupa limpa
é com ela
que vou
dançar

Felipe dança e a gente entra no seu ritmo, só que com nossa própria coreografia e com a nossa própria roupa. Muitas são as temáticas que desfilam pelo livro, como a relação pai e filho, o apaixonamento, o amadurecimento, o pertencimento, o despertar da sexualidade e do sexo propriamente dito, as questões de raça e de gênero. Na escrita de Felipe Gomes a sensualidade e a violência também formam par. 

Tudo isso é feito por um olhar atento para a contemporaneidade. Essa característica da sua escrita salta aos olhos e aos sentidos quando o poeta se propõe a explorar algumas nuances dos relacionamentos atuais, como o uso de aplicativos, as dinâmicas do sexo casual e o surgimento de termos como o “ghosting” para organizar nosso abandono. Fica tudo muito próximo e palpável, porque Felipe fala de coisas grandiosas de maneira simples.


há uma nova passante no tinder


passadas apressadas:
passo para um lado

passo para o outro
um passo pra direita

outro passo pra esquerda
o passado pra lá

passando pra frente
mas ainda dando o 
coração

pra quem me passa
pra trás

A questão da paternidade é algo latente na obra e versa sobre os prós e contras do que essa temática carrega de simbolismos. Felipe consegue falar da paternidade em seu âmbito acolhedor e através de seu potencial de ser uma metáfora para o menino que fora plantado e do homem que irá florescer. Logicamente, é impossível não passar por questões como violência, machismo e homofobia a partir do momento que esse homem nasce, uma vez que nosso solo sempre foi regado por ideais violentos de masculinidade.

O poeta trata dessa questão em si com maestria, pois ao mesmo tempo que fala do “tapa peludo” que o estalou na infância, quando abrimos o livro deparamos com uma dedicatória para seu pai, Braz Gomes, que na página seguinte se transfigura em uma frase de Brás Cubas que parece ter sido feita para o livro: “o menino é pai do homem”.

Após o dueto do Braz com z e do Brás com s, embarcamos em uma obra que explora diversas nuances da masculinidade. Por mais que as questões da masculinidade gay sejam mais latentes no livro, de forma alguma “Pai de menino” se torna um livro de nicho. É uma obra que causa identificação por tratar de temas universais e no que se trata do universo masculino, existe uma reflexão importante sobre algo que pouco se fala: o silêncio. Os poemas escancaram as consequências de um silêncio entre homens que reverbera nas manifestações de afeto e no sexo, independente da orientação sexual. Existe um pacto de silêncio masculino nunca combinado, mas há muito consolidado que nos cega, nos limita e nos obriga a ficar em um ciclo de erros e desencontros.


aos dezessete me ergueu pela gola e me atirou contra a
geladeira após discussão em que
sustentei seu olhar já da mesma altura me deixou caído e
saiu sem dizer nada

aos dezoito ele se foi meses depois de eu me tornar adulto
o procurei em livros
substitutos e o encontrei neste grande silêncio que
descobri ser
a linguagem entre os homens
Ao terminar a leitura de mais um livro do Felipe e olhar detidamente para sua estrutura e sua divisão nas seções nasce, cresce, morre e reproduz, percebemos como a inversão das duas últimas etapas da vida é uma sacada genial. A obra termina mostrando o quanto somos raiz, resquício, continuidade. Mostra a importância da marca que deixamos (para o bem e para o mal) com a nossa existência. A gente morre, reproduz e vira pai de menino.