A mulher ruiva do Orhan Pamuk (Companhia das Letras, 2023) conta a história do jovem Cem Çelik, um garoto de classe média que sempre sonhou ser escritor. Após ser abandonado pelo pai, que foi atrás de seus ideais revolucionários, Cem decide mudar de seu local de origem para se tornar aprendiz do mestre Mahmut, um experiente cavador de poços. Enquanto procuram água em um terreno improvável, começam a estabelecer uma relação que, por vezes, preenche o vazio paternal de Cem, inclusive na ambivalência entre amor e ódio. A rotina do garoto acaba sendo alterada, quando ele se depara com a figura de uma mulher a qual ele chama de “a mulher ruiva”. O fascínio de Cem pela mulher beira a obsessão, passará a ditar os seus pensamentos, guiar seus passos e mudará o curso de sua vida.


Enquanto adentram cada vez mais para o fundo da terra, munidos apenas de picareta, pá e balde, Cem e Mahmut vão revelando alguns detalhes de suas histórias de vida. Como Mahmut adora contar histórias nas horas de descanso, Cem se deixa embarcar nas suas narrativas, sempre tentando imaginar a fonte das mesmas e qual a fração que pertence às próprias vivências do velho cavador de poços e quais são fragmentos das muitas histórias que passaram por ele.

Ouvindo seus vívidos relatos sobre aprendizes descuidados, eu percebia que, em sua mente, o submundo, o mundo dos mortos e as profundezas da terra correspondiam, cada um deles, a partes determinadas e reconhecíveis do céu e do inferno. Segundo ele, quanto mais fundo cavávamos, mais perto chegávamos da esfera de Deus e de Seus anjos – embora a brisa fresca que soprava à meia-noite nos lembrasse que a cúpula azul do céu, com seus milhares de estrelas cintilantes, devia ser encontrada na direção oposta.
Orhan Pamuk concebeu uma história que encanta por suas diversas camadas. Quando trata da paixão de Cem pela mulher ruiva, ela o faz envolto em toda uma aura de mistério e sensualidade. O garoto Cem olha para a mulher ruiva com olhos de quem vê o próprio segredo da existência. Mesmo que incialmente não saibamos nem mesmo o seu nome, somos conquistados pelo própria idealização e amor que Cem criou pra si.

Uma outra faceta da obra que nos fascina é o trabalho de construção de um poço. A história, que se passa no início dos anos 80, em uma Turquia completamente diferente do que é hoje, narra métodos bastante arcaicos para se furar um poço. Mahmut e Cem utilizam de métodos totalmente manuais. No esforço de subir e descer o balde com toda a terra, pedras e demais fragmentos retirados do buraco, acompanhamos também o lapidar de suas próprias vivências. São exatamente nesses momentos de esforço e ações repetidas, que conhecemos a intimidade de Cem e muitas de suas ambições e dores. Pamuk nos insere em um clima que mescla um sentimento de admiração pela capacidade e coragem de descer vinte metros na terra de forma braçal, com o medo sempre eminente do soterramento total.

Para além disso, o autor trabalha muito bem ao mesclar em seu texto algumas referências a histórias clássicas e que dizem muito sobre os personagens. Cem é fissurado pelo mito de Édipo Rei. Um dos pontos de virada da narrativa é quando Mahmut quebra a rotina ao pedir Cem para contar uma história em seu lugar. Cem narra a história de Édipo Rei, do filho que mata o pai por engano e desposa, sem saber, com a própria mãe. O acesso a história do herói grego abre uma fenda na relação do jovem e do aprendiz.

A curiosidade de Cem pela história de Édipo Rei do Sófocles o leva a conhecer um outro conto épico de proporções e temática semelhantes: a história de Rostam e Sohrab, que faz parte do épico persa Shahnameh do século X, do poeta Ferdowsi. Ele seria uma espécie de anti-Édipo, onde o pai acaba por matar o próprio filho sem saber sua verdadeira identidade. Em ambas as histórias os heróis precisam lidar posteriormente com o grande sofrimento de terem aniquilado um parente próximo e as consequências desse ato.


A predileção de Cem, pelas trágicas histórias dos heróis gregos e persas, faz todo o sentido quando olhamos para seu histórico familiar e mais detidamente para sua relação com o próprio pai. “A mulher ruiva” é um livro que explora diversas minúcias que envolvem a paternidade.

Recuando um pouco para examinar o assunto racionalmente, eu conseguia entender o que havia de tão familiar na história de Sohrab e Rostam e sua semelhança com a história de Édipo. Na verdade, havia paralelos surpreendentes entre a vida de Édipo e a de Sohrab. Mas havia também uma diferença fundamental: Édipo matou o pai, ao passo que Sohrab foi morto pelo pai. Uma história é de parricídio, a outra, de filicídio.
Cem Çelik foi duramente marcado pela ausência paterna. Mais do que ele mesmo percebe. Todos os seus passos após o abandono do pai, foram, ainda que inconscientemente, uma forma de obter respostas e preencher o vazio.
Parece que todos nós desejaríamos ter um pai forte e decidido nos dizendo o que fazer e o que não fazer. Será que esse desejo nasce da dificuldade de distinguir o que devemos do que não devemos fazer, o que é certo do que é errado? Ou se deve ao fato de precisarmos o tempo todo nos convencer de que somos inocentes e não pecadores? A necessidade de um pai existe sempre ou nós a sentimos apenas quando estamos confusos ou angustiados, quando nosso mundo está vindo abaixo?
Pamuk faz reflexões profundas sobre a complexidade das relações humanas e o impacto do abandono. Colocar o personagem abandonado, cheio de dúvidas e questões existenciais para cavar um poço, é algo que apenas um escritor com a genialidade de Pamuk poderia conceber.