O cometa é um sol que não deu certo do Tadeu Sarmento (Edições SM, 2017) é um livro tocante que conta a história de um grupo de crianças sírias que estão aguardando a oportunidade de entrar em um campo de refugiados que fica na Jordânia. A obra nada na maré contrária do que costumamos ler quando o assunto são pessoas refugiadas. Através de metáforas bem construídas, explora o que significa essa condição de fuga do seu lugar de origem, do não-pertencimento a uma localidade e da importância do senso de coletividade motivada por um contexto político e religioso que persegue, expulsa e até mata aqueles que não comungam com um mesmo ideal de vida e de mundo.
“O cometa é um sol que não deu certo” venceu o 13º prêmio Barco a Vapor. A obra já justifica seu mérito logo nas primeiras páginas. Tadeu Sarmento escreve como quem domina as mais rebuscadas técnicas de contação de histórias – e para mim, a qualidade de um bom narrador está no êxito em tecer um texto que conquista através de sua capacidade de pegar o leitor pela mão e conduzir para o universo que se apresentará nas próximas páginas. O texto consegue ser simples, nada banal e mesmo tratando de um tema social delicado, foge dos clichês que poderiam esbarrar em didatismos e sentimentalismos baratos. É um livro que nos leva a refletir sobre direitos humanos.
Sarmento revelou em entrevistas que a ideia para a história surgiu de um acontecimento trágico. Foi após ter acesso à fotografia do garoto sírio que morreu afogado na travessia entre a Grécia e a Turquia, cujo corpo foi parar na areia. A imagem viralizou nos jornais e redes sociais em meados de 2015 e sua tristeza e brutalidade acabou chamando atenção para a situação dos refugiados. Apesar do apelo trágico, Sarmento escreveu um livro bonito e que carrega uma mensagem de esperança. O texto poético aproxima narrador, personagens e leitores, ampliando nosso plano de visão em relação a um tipo de privação de liberdade diferente do contexto brasileiro.
Tanto o texto, como as personagens do livro conseguem exercer esse papel. O menino Emanuel é uma figura cativante. É daqueles personagens que a gente se conecta ao ponto de desejar que ele exista na vida real. Figura rara que consegue criar um ambiente de leveza, amizade e descobertas, mesmo estando diante da privação de liberdade causada pela estupidez humana.
Emanuel olha para o céu em direção às nuvens (não ao sol, mas às nuvens) e pensa que ninguém nunca tem escolha. Que as pessoas são iguais àquelas nuvenzinhas no céu, empurradas pelo vento sabe-se lá para onde ou até quando.
A curiosidade de Emanuel é o que o torna mais humano, que não o deixa esquecer de sua dignidade mesmo em situação de espera por acomodações decentes, por comida e por uma autorização para adentrar uma nova terra pelo simples fato de querer estar vivo. Através de seu olhar para as coisas mais simples é que Emanuel consegue se transportar para fora das cercas do campo de refugiados e passar quase ileso pelas violências que não obedecem a fronteiras. Ele nunca caminha sozinho. Emanuel está sempre cercado pelas amizades que fez no campo e todos são meio que magnetizados a estarem na presença do bom Emanuel, menino que acredita que o mar é um céu de ponta cabeça.
O campo está lotado. Emanuel, no alto da colina ao norte, vê a imensidão de pessoas do lado de fora. A fila é tão comprida que sua ponta final se confunde com o próprio horizonte até sumir de vista. Toda aquela gente espera pela chance de refúgio. Atrás das cercas de arame farpado, elas imploram para entrar. Estão desamparadas, indefesas, à mercê de um ataque das tropas rebeldes ou dos animais noturnos do deserto, que são muitos.
As mães (sempre elas) erguem os filhos pequenos, suplicando que, pelo menos, os deixem entrar. Em seus braços, os meninos parecem voar, balançando os bracinhos, que assim parecem asas quebradas. Elas só querem que eles possam viver, de preferência em um novo país, onde não temam ver seus futuros filhos morrerem antes deles.
“O cometa” é um livro para todas as idades. Tadeu Sarmento escreveu uma obra que pode ser lida por crianças, adolescentes e adultos, pois existem ali mensagens que vão se conectar de forma diferente com cada tipo de leitor.
– Sabe, Emanuel, esses aqui – e pisou ainda mais forte nas pedras – são os passos de um homem, de um homem velho, claro, mas que já foi criança como você e agora tem que traçar o próprio caminho na Terra. Esses não deveriam ser os passos de vocês.
O que sobressai na obra é uma perspectiva de esperança que se acende o tempo todo, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores, e também o olhar do autor para as infâncias diante de cenários de violência. Alguns trechos são emocionantes por denunciarem a grande injustiça que está no fato de crianças colherem violências plantadas por mãos adultas. A história nos faz pensar a quem pertence esse mundo, se fronteiras imaginárias são mais importantes que pessoas e por que não podemos simplesmente migrar em situações onde a nossa própria existência está em risco.
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