Morreste-me do José Luís Peixoto (Dublinense, 2015) é mais um exemplo de livro que nos atravessa por tratar de um tema que muito nos aflige: a morte. A literatura é um dos instrumentos que temos em mãos que mais se aproxima de uma relação corajosa diante do fim, simplesmente por falar sobre. São inúmeras as obras que surgem como uma forma de seus autores vivenciarem o luto e quando o fazem, muitas vezes acabam levando pela mão milhares de leitores que também precisam dar vazão a suas próprias perdas.



Neste que foi o primeiro livro escrito pelo premiado escritor, já nos deparamos com a potência de seu texto poético. As palavras desfilam diante de nós explorando uma estrutura textual muito fluida. Quase como se faz em um diário, Peixoto descarrega sentimentos e temas universais que afloram diante do processo de luto, portanto, é uma obra que conversa intimamente conosco, seja pelo medo da perda em si, pela pretensão de aprender a lidar com a mesma ou até mesmo com o afloramento de lembranças de quem perdeu alguém muito importante.

Em “Morreste-me” José Luís se despede de seu pai com um texto tão profundo e amoroso que lemos acompanhados de ternura e angústia. Ternura, pois cada palavra, cada frase, cada parágrafo consegue desenhar a relação de amor que existia (existe) entre esse pai e esse filho. José Luís está despedindo não só de um pai, mas de uma figura de referência em sua vida, de um homem que admirava, onde as mais simples palavras e ações se eternizaram em memória afetiva.
Se pudesse tinha-te protegido. Chamavas-me pelo nome, chamavas-me filho, e ouvir o meu nome na tua voz, e ouvir o filho no fio cálido da tua voz era uma emoção funda. S pudesse tinha te protegido. A esperança, pai. De três em três semanas, cinco manhãs seguidas viam-te ir ao tratamento; eu, teu filho, via-te ir ao tratamento e doía-me a vida, doía-me a vida que em ti e negava, a vida a gastar-te, ainda que a amasses, a vida a derrubar-te, ainda que a amasses.
A angústia também se faz presente ao ponto que o autor narra sua incredulidade e sua dor diante de uma ausência que foi se projetando aos poucos. A angústia se projeta nos pequenos golpes e estratagemas que inventamos para nós mesmos a fim de evitar que a morte se faça presente. Seja numa pausa para uma conversa informal onde “nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá.” Enquanto acompanha a partida lenta de seu pai, José Luís fala de sua dor oceânica, e enquanto fica suspenso num tempo presente em que tem a morte como companhia, a vida se mostra bela e intensa ao narrar também as lembranças mais fortes de seu pai.

É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz, fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és.
Ficamos diante de um narrador que explora diversas fases e faces do luto. De um narrador que se revolta contra a natureza da morte e ao mesmo tempo a entende. De um narrador que tem sua rotina devastada por uma perda e tenta se apegar às minúcias do cotidiano para encontrar conforto. De um narrador que questiona as leis da existência e da não existência, que tenta respirar um ar que agora parece irrespirável. “E este lugar que era mundo, agora, vazio oco quer ser mundo ainda”.