O Horror de Dunwich de Howard Phillips Lovecraft (Raposa Vermelha, 2019) foi minha primeira leitura do cultuado escritor de terror. Assim como sou fissurado em filmes e séries de horror, achei que já era hora de conferir uma publicação do autor, uma vez que é considerado um dos maiores do gênero. O que ainda estava me impedindo de ler algo do escritor foram os inúmeros comentários que expõe o racismo de Lovecraft. Um racismo que se manifestou nas opiniões do homem público em vida e em sua obra. Ainda assim resolvi encarar e me vi em uma situação inusitada, pois fiquei entre a angústia do racismo inegável de sua produção e o encantamento pela sua destreza em contar uma ótima história de terror. 


Eu não sei qual é a régua e nem como se faz a medida de até onde é possível separar obra e autor. Acho que estamos todos aprendendo isso. Com a geração do cancelamento e de um politicamente correto que nem sempre possui caráter educativo e que foca mais no linchamento público, fica ainda mais difícil saber até onde podemos ir. No caso da literatura a situação se complica ainda mais, devido a necessidade que essa arte possui de ser livre e desafiadora, de quebrar os paradigmas e nem sempre dizer o que queremos ouvir. 


Acontece que Lovecraft passa do tom. O racismo que encontramos em sua obra vai além da manifestação "natural" de sua vivência em um contexto de uma sociedade puritana, protestante e de extrema segregação racial. Lovecraft transformou essas vivências em ódio racial. Isso é muito perigoso e motor para o fascismo. Ele transporta de seu imaginário para a escrita toda a repulsa advinda de seus preconceitos, daquilo que fugiu da norma vigente da época, ou seja, o que era diferente e portanto considerado inferior. É nítido na sua escrita a transformação desse sentimento de repulsa e até de medo em história. E na sua história o diferente representa o mal. Por vezes um mal desumanizado. Lovecraft cria personagens com ares demoníacos e perturbadores que fazem referências sutis, e as vezes nem tão sutis assim, a negros, imigrantes e homossexuais. Isso para ele era parte do seu terror particular, portanto parte de sua obra. E bem sabemos que a desumanização dos negros, por exemplo, foi um dos fatores que justificaram séculos de escravidão.

- Vou dizer uma coisa , sra. Corey, está andando por aí uma coisa que não devia estar por aí e eu garanto que aquele Wilbur preto que teve o fim ruim que merecia está no fundo de tudo isso. Ele não era totalmente humano, sempre digo para todo o mundo; e acho que ele e o velho Whateley devem ter criado alguma coisa naquela casa cheia de tábuas pregadas que também não era muito humana, como ele. 


Em "O Horror de Dunwich" o personagem Wilbur Whateley é o remanescente de uma família com uma história perturbadora. Membro de uma espécie de clã que faz parte do imaginário macabro da comunidade de Dunwich por se envolverem em histórias bizarras. Eles tem o costume de subir o monte e fazer cultos satânicos no alto de uma pedra e toda a cidade sabe disso. É nesse clima de mistério que vamos embarcando na aura da história que é tão densa e pesada a ponto de fazer o leitor sentir uma espécie de mal estar com as descrições do que se sente só de passar pelo povoado. 


É sempre um alívio deixar aquele lugar e seguir a estrada estreita que contorna o sopé das colinas e atravessa a região plana até voltar à estrada de Aylesbury. Depois ficamos sabendo que passamos por Dunwich.


 


Ninguém, nem mesmo quem tem conhecimento dos fatos ligados ao horror recente, é capaz de dizer exatamente o que ocorre em Dunwich; embora lendas antigas falem de ritos e conclaves profanos de índios, em meio aos quais invocavam obscuros vultos proibidos das colinas arredondadas...

Quando o assunto é narrativa de terror a qualidade da escrita de Lovecraft é inegável. Uma das maiores destrezas do autor estava em criar um horror que focava mais em transmitir uma sensação de medo do que em fazer sangue e lodo espirrar.  A forma como ele descreve Dunwich, por exemplo, é tão imersiva que o próprio vilarejo se torna quase que uma entidade do mal. Caminhando entre as casas úmidas e decrépitas do vilarejo, onde o som de folha seca sendo esmagada pelos pés poderá acordar um espírito maligno ou um demônio a qualquer momento. Lovecraft consegue deixar o leitor apreensivo e quase chega a nosso nariz o mal cheiro que paira pela cidade e que é descrito no livro, assim como os sons misteriosos que surgem do meio da mata e do alto das montanhas. Quase sem mostrar nada o narrador nos faz ter a certeza de que algo perturbador ronda Dunwich. Existe um ronco de ódio que vive por baixo daquela cidade.


Um outro ponto empolgante da obra é quando Wilbur se coloca à caça da versão latina de um livro chamado Necromonicon, que supostamente possui códigos e cifras com poder de ressuscitar deuses e demônios do submundo. Wilbur é também um pesquisador do sobrenatural e suas pesquisas fazem com que ele viaje para outra cidade. Ele chega até a biblioteca de uma universidade, para tentar acessar um exemplar do Necromonicon, mas é barrado pelo bibliotecário (pela sua má fama e aparência). O bibliotecário transmite um alerta a todos os outros bibliotecários da região para que Wilbur não tenha acesso a obra a fim de evitar uma grande maldição. Nesse ponto existe uma exploração bem interessante sobre o poder da biblioteca e do bibliotecário que também são envoltos em uma aura mística juntamente com a biblioteca enquanto espaço e repositório de conhecimentos e segredos infindáveis. 


A edição que tive em mãos está um primor. Inclusive foi um dos fatores que fizeram o livro furar minha lista de leituras. A capa está muito chamativa e as ilustrações do ilustrador argentino Santiago Caruso dão um toque todo especial para a publicação. Santiago parece ter captado bem toda a mística que ronda a história e transportou isso para o papel de forma que texto e imagem fazem uma dobradinha perfeita no objetivo de angustiar o leitor. As ilustrações não tem só um primor técnico, mas também uma força narrativa que nos coloca dentro de Dunwich. 


Acredito que quase todo livro vale a pena ser lido. Quase todo livro possui algum potencial em acessar algo no íntimo do leitor que as vezes não é da ordem do entendimento. Tem livro que toca e tem livro que não se aproxima do nosso "eu leitor". No caso de "O horror de Dunwich" posso dizer que é um dos melhores livros de terror que já li. É um livro que vale a pena ser lido por quem é fã do gênero de terror, segmento onde é muito difícil encontrar narrativas que não caem na armadilha do óbvio. Isso não quer dizer que simplesmente deixei de lado toda a problemática racista que envolve obra e autor. Penso que também se faz necessário ler com olhos de ler, ciente de que temos ali a representação de um capítulo muito triste mas real da história da humanidade. Toda leitura possui inúmeras camadas e "O horror de Dunwich", possui uma camada fantástica que de alguma forma ferve nosso sangue de excitação e uma outra que causa incomodo e que será para sempre o preço a ser pago por quem deseja conhecer o universo de H.P Lovecraft.