Bom dia Verônica é a mais nova série brasileira a entrar no catálogo da Netflix. A história é baseada em livro de mesmo nome escrito pela Ilana Casoy que é uma escritora e criminóloga especialista em serial killers e pelo Raphael Montes, um dos mais celebrados escritores contemporâneos que se define como um apaixonado por contar histórias. O livro foi publicado originalmente em 2016 com um pseudônimo e reeditado recentemente pela editora DarkSide Books com o esmero editorial que já somos acostumados a ver e já com os nomes de seus autores. "Bom dia, Verônica" é uma narrativa policial protagonizada por uma escrivã de uma delegacia de homicídios da cidade de São Paulo. A série adotou algumas mudanças em relação ao livro, portanto, a resenha irá se referir especificamente à trama apresentada nessa série que possui grandes atuações. A Verônica é interpretada pela Tainá Muller, o serial killer é vivido pelo Eduardo Moscovis, enquanto sua esposa é interpretada pela Camila Morgado. 


Verônica é uma mulher que lida com sua rotina como mãe, esposa e exerce com talento seu trabalho de escrivã da polícia de São Paulo. Acontece que ela faz mais do que sua função dentro da delegacia por ser uma mulher inquieta e com sede de colaborar com a resolução de alguns casos. Por conta de sua sagacidade acaba se envolvendo na investigação de alguns crimes e sendo uma peça chave para a resolução. Como pano de fundo para a série, temos o caso de um homem que persegue mulheres em um aplicativo de relacionamentos e que acaba causando o suicídio de uma de suas vítimas na frente de Verônica. 


O segundo caso, que será o foco principal da trama, são os assassinatos de mulheres executados por um serial killer que também possui um cargo importante e boa reputação dentro da polícia. Verônica chega até esse serial killer, através de uma tentativa de denúncia da esposa do assassino e esse caso toma uma posição muito pessoal na vida da protagonista movido por seu senso de justiça e empatia pela mulher em situação de violência. Veronica passa a correr atrás de provas contundentes para que possa entrar com uma queixa formal e o caso entrar em processo de investigação. Diante desses fatos, a série passa a tratar de muitos temas, mas dois deles chamam a atenção e servem como motivos para indicar a série: a discussão sobre a violência contra a mulher e a questão da corrupção policial e das burocracias legais que podem muitas vezes impedir que a justiça seja feita. 

De cara é possível perceber uma intenção da produção de que o tema da violência contra a mulher seja um dos pontos principais da história. A existência de um serial killer que sequestra mulheres e leva para um porão em local desconhecido serve para muito mais do que um clímax ou uma exploração gratuita da violência, pois através da personalidade das personagens e dos acontecimentos o roteiro mostra de forma muito responsável os principais sinais da escalada de um histórico de violência doméstica. Inclusive os autores partiram de alguns casos reais para criar algumas das situações em ambiente doméstico. Eduardo Moscovis que vive o Brandão e Camila Morgado que dá vida a Janete, dão um show de interpretação ao conseguirem transportar para a cena a tensão e o medo que uma mulher pode sofrer quando vítima desse tipo de violência. Camila Morgado faz uma interpretação brilhante onde sua expressão corporal, sua respiração e seu olhar ajudam a compor uma personagem que cativa o público. Sentimos medo junto com ela e passamos a torcer por sua fuga dessa situação. 


Os sinais vão da sutileza de algumas palavras ao espancamento de forma que nós, telespectadores, vamos conseguindo identificar cada um deles. A violência começa a ser mostrada nos detalhes, como na obediência da esposa, na necessidade de fazer tudo perfeitamente em relação aos afazeres domésticos, na falta de liberdade em poder transitar para onde quiser, no fato de não poder ter contato com a família, não poder ter um telefone celular, de estar disponível para o sexo sempre que o o marido deseja e em cenas como a da mesa de jantar, onde apenas um movimento mais brusco do agressor serve de sobressalto para a mulher ou quando ele se senta ao seu lado no sofá e automaticamente ela se afasta com o corpo retesado. 


A violência também é mostrada na forma como o agressor consegue convencer a mulher de que tudo que ele faz é por culpa da mesma, que não seguiu suas ordens, que saiu do roteiro e que portanto, precisou tomar uma atitude mais agressiva. Sendo assim, entre episódios de xingamentos e de dominação, o marido intercala com expressões de cuidado e de carinho que fazem com que a mulher questione sua própria posição e se coloque no lugar de culpada, de pessoa que faz tudo errado. Quando coloca a mulher em posição de obediência e de inferioridade, o homem vai traçando seu domínio e seguindo numa escalada de violência que vai se aproximando das agressões físicas e que pode levar a morte. Sem perder seu caráter literário e sem sair do modelo que uma série pede, Bom dia Verônica acaba assumindo um papel importante de suscitar discussões sobre a condição da mulher e o feminicídio, uma vez que estamos em um país com altos índices de violência contra a mulher e onde os casos cresceram 22% durante o isolamento social causado pela pandemia. 


Grande parte dos serial killers possui um modus operandi que faz parte dos seus crimes e entre os executados pelo Brandão está o ritual de colocar Janete sentada em uma cadeira com uma caixa sobre a cabeça. Durante esses momentos Janete sabe e ao mesmo tempo não sabe tudo o que se passa enquanto Brandão ataca as mulheres e o estar dentro da caixa é mais um elemento simbólico para a personalidade do assassino, para a situação de dominação em que Janete se encontra e que nos leva a muitas reflexões sobre a necessidade de conseguir sair, romper com a caixa para entender a própria situação e ter a coragem necessária para fazer a denúncia. 




A produção da série explora de forma inteligente o ambiente onde acontecem as principais cenas entre Brandão e Janete para discutir sobre opressão. A casa é como se fosse uma gaiola para Janete, lugar de onde não pode sair e onde consegue ter apenas vislumbres do mundo que corre lá fora. Brandão apelida Janete de "passarinha" e isso faz todo sentido para o lugar que ela ocupa em sua vida, uma passarinha presa em uma gaiola. Em uma das cenas Verônica vai até a casa de Janete, enquanto Brandão está no trabalho e como a mulher está presa em casa as duas só conseguem conversar entre as grades da janela, o que aumentou essa percepção de uma casa que deixa de ser um lar para ser uma gaiola, uma prisão. 


A questão da corrupção policial entra como um elemento importante na narrativa e dá o combustível para que seja possível tratar de temas como ética, relações de poder, política, machismo, entre outras. A Verônica será o elo que irá interligar as questões sobre a luta da violência contra a mulher, quanto aquelas que irão se voltar para a corrupção e como ela impede que alcancemos a justiça social. Nesse quesito a série trás bastante tensão, pois somos apresentados a uma realidade onde as relações de poder agem conforme benefício próprio e onde o bem estar social e o dever de servir e proteger não passa de uma mera ferramenta para se alcançar status. Verônica se vê diante de uma realidade que a coloca de frente com seus princípios, com sua história de vida, com sua missão enquanto policial e enquanto mulher. Quanto mais Verônica se vê de mãos atadas, mais ela se movimenta para promover a justiça que tanto busca, o que irá colocá-la em perigo. 


Bom dia, Verônica vem para mostrar a potência do Brasil na produção de séries e como é possível criar um roteiro que prende os telespectadores quando a dobradinha série televisiva e literatura andam de mãos dadas. Como os autores do livro participaram de perto da concepção da série, podemos perceber um cuidado com os elementos que eram essenciais para contar a história e como as mudanças pontuais serviram apenas para transportar a história de um suporte para outro de forma satisfatória.