No mês de julho uma nova série brasileira estreou no catálogo da Netflix. “Boca a Boca” do diretor Esmir Filho e Juliana Rojas, conta a história de um grupo de jovens expostos a uma doença desconhecida transmitida pelo beijo. Ironicamente a série foi escrita e produzida muito antes da epidemia que assolou o Brasil e o mundo. O incidente se passa na fictícia cidade de interior chamada Progresso que é dominada pela agro indústria. Os jovens dessa cidade possuem dois lugares comuns: a escola Modelo capitaneada com rigidez pela diretora Guiomar (Denise Fraga) e uma festa rave psicodélica que supostamente é também uma seita. "Boca a Boca" usa de elementos da ficção científica e de muito suspense em seis episódios muito bem dirigidos e com uma trilha sonora incrível.


Acompanhamos as vivências dos jovens diante do rigor e da experimentação da liberdade em uma cidade interiorana, mas conectada. Essa brincadeira com a dualidade não para por aí, ela está também nas cores escolhidas para as cenas que são uma obra de arte e constroem uma série muito bonita visualmente. Quando estão na escola as cenas exploram cores padrões e quando algo subverte essa padronagem, acontece através de elementos que representam a personalidade dos adolescentes e que sugerem a ebulição que está prestes a emergir. Isso tudo em contraste com cenas externas que pegaram emprestados os lindos cenários da cidade de Goiás Velho.



As personagens experimentam a vida com sede de intensidade e liberdade em uma cidade de aparência tão bucólica que inicialmente essa estratégia poderia não funcionar, mas encaixou muito bem com a temática da série. Essa disparidade também é ilustrada com a forma como os jovens utilizam e muito de recursos tecnológicos, enquanto das janelas vemos quilômetros e quilômetros de pasto e gado.

Em “Boca a Boca” a epidemia, a seita e a Escola Modelo servem de ponto de partida para nos inserir na narrativa e nos apresentar as personagens. Depois partem para uma discussão maior que remete à saúde das pessoas e a qualidade dos relacionamentos que estabelecemos, que tanto podem ser da ordem familiar, de uma amizade, como também amorosa. A premissa da série perpassa o “todos estamos doentes” e o que varia é o fator que gera o adoecimento de cada um.

A série é protagonizada pelo trio de jovens Chico (Michel Joelsas), Alex (Caio Horowicz) e Fran (Iza Moreira). Cada uma dessas personagens, enfrenta questões muito diversas e que os afetam fortemente, inclusive em seus processos de amadurecimento. A amizade entre eles e a luta contra essa doença misteriosa irá interligar suas histórias, estabelecer uma relação de afeto e expor o mais íntimo de suas emoções. "Boca a Boca" também transita por diversos conflitos familiares e também por diversas questões de cunho social que vão da relação de patrão e empregados no campo, como a vontade de lucrar a todo custo do agro negócio.



Mas o que me moveu a escrever esse texto e que gostaria de analisar é uma história dentro da história. A relação homoafetiva entre Chico, personagem de Michel Joelsas conhecido pelo seu trabalho nos filmes “O ano que meus pais saíram de férias” e “Que horas ela volta?” e do Maurílio, interpretado pelo ator recifense Thomas Aquino que ganhou fama ao protagonizar o aclamado filme Bacurau.

Chico é um garoto que mora com o pai e o irmão mais novo na cidade de Progresso. Antes morava com a mãe em outra cidade, mas a história conta por alto que o garoto fora para Progresso para fugir de algum histórico de envolvimento com drogas. Ele passa a viver com esse irmão com o qual tem uma relação bonita e de muito cuidado, e com o pai que é um homem mais reservado e religioso que demostra a seu próprio modo a dedicação e o cuidado que tem para com os filhos. Chico é um rapaz bonito, estiloso, de cabelos compridos, unhas pintadas e personalidade naturalmente livre. Liberdade essa que ele leva para a sua sexualidade. Chico não se prende a estereótipos de gênero e se relaciona com quem tem vontade. Ele se aventura por aplicativos de relacionamento, que de fato mesmo podemos chamar de aplicativos de “pegação”. Até que um dia ele se depara com um perfil mostrando apenas o dorso de um homem e nomeado como “pauzudo”.

Quem está por trás do perfil é o capataz de fazenda Maurílio, um homem que foge de todos os estereótipos do homossexual que o senso comum crê como uma regra. Inclusive, Maurílio se aproxima muito mais do estereótipo do homem hétero, macho, rústico e forte que é ainda acrescido de sua lida na fazenda com cavalos, bois e todo tipo de trabalho braçal. Nessa primeira temporada sabemos muito pouco sobre sua história. Ele é um homem calado, introvertido e nesse ponto a ótima interpretação de Thomas Aquino ajuda a quebrar muitos estereótipos com a construção de um personagem que parece uma muralha, mas que na verdade é sensível. Vamos percebendo sua incapacidade de um ato de violência, principalmente quando perto de Chico.

Ainda que a série consiga romper com uma ideia pré-concebida sobre a mentalidade das pessoas do interior e do campo, é lógico que um relacionamento homossexual entre um adolescente e um homem adulto não seria bem recebido. Chico se encanta por Maurílio e demostra o interesse de um relacionamento sério, enquanto Maurílio, logicamente, faz movimentos de afastamento por conta de todos os problemas que a relação poderia trazer para ambos. Acontece que ele também está encantado. Mais uma vez a série explora a diferença e a diversidade, que vai desde a idade dos amantes, até o mundo em que transitam socialmente. Da personalidade dissonante de ambos, até o nível de sociabilidade. Chico precisa estar entre pessoas, entre amigos, ficando chapado em festas, enquanto Murilo parece mal gostar de falar e sua principal atividade é cuidar da fazenda e do gado.


No episódio 5 chamado "unfollow", acontece uma das cenas mais bonitas de Chico e Maurílio e que pode motivar diversas interpretações sobre relacionamentos homoafetivos, Murilo está nu, sentado em sua cama tocando uma moda de viola intensa e triste. A câmera passeia pelo violão e vai se aproximando muito lentamente da janela, onde Chico está de pé e despido, olhando para a imensidão do pasto em um corte de cena que parece uma pintura. Chico elogia a canção tocada enquanto continua a olhar em frente, de uma forma que parece estar elogiando mais o momento corrente que a canção ou até mesmo que estivesse analisando a sua própria história com o capataz, definindo-a como “triste, mas lindo”. Murilo então pede que ele tenha cuidado, pois alguém poderia vê-lo na janela e então Chico diz que não tem ninguém, "só pasto e boi". Instantaneamente a expressão de Maurílio passa de apreensão para um leve sorriso, pois Chico evocou o seu mundo, o seu lugar de conforto para aquele momento, enquanto ele próprio já se encontrava imerso onde mais queria estar, que era no íntimo de Maurílio.

Chico então olha para os pés de Maurílio e diz: “Eu nunca tinha visto seu pé” e ele pergunta se o garoto achou muito feio, ao que Chico responde que é muito e os dois caem na gargalhada. Maurílio então devolve um olhar terno para Chico e diz: “Eu nunca tinha visto seu rosto de dia”.


Essa cena é muito significativa tanto para a narrativa da série, quanto para fazer um diálogo mais amplo sobre sexo, sexualidade, afeto e relacionamento da comunidade LGBTQIA+. A violência da LGBTfobia nos inseriu em um universo que é replicado pelos principais aplicativos de interação afetivo-sexual, onde grande porcentagem não utiliza nem mesmo a foto do próprio rosto, e muitas vezes mostram apenas uma parte de seu corpo que possa servir de propaganda, de objeto de desejo. O preconceito nos castra a uma tal maneira e nos coloca em um lugar de medo diário, onde nem mesmo nos sentimos seguros para utilizar o próprio nome e fazendo escolha por nomenclaturas que tem o intuito apenas de mostrar qual o nosso campo de interesse numa relação sexual. Na série vemos o peão Murilo utilizar "pauzudo" como nome de usuário e em uma rápida olhada em qualquer um desses aplicativos encontraremos aqueles que se nomearão como "dotado", "passivo", "urso", "discreto", "brotheragem", entre outras palavras do tipo.

A autonomeação que utilizamos nos aplicativos de relacionamentos é algo sobre o qual não conversamos, mas que trazem consigo significados importantes sobre representação social. Em muitos casos essa nomeação carregará sentidos que se ligam a questões não só de sexo, mas também de gênero, raça e até condição social.

Pode-se perceber que, assim como as identidades, o gênero e até a própria sexualidade são normatizados por meio de mecanismos e políticas de coerção do corpo, enquanto algo discursivamente construído, gerando, com isso, toda uma gama de sujeitos que fazem uso da “performance” como elemento de resistência ou mesmo de proteção contra as sanções impostas pela norma vigente.
No domínio das homossexualidades e das relações de gênero, uma análise terminológica permite aprofundar conhecimentos sobre as relações de poder e de dominação desse âmbito, bem como os estereótipos e processos de exclusão que alguns sujeitos produzem ou reproduzem através dos termos que utilizam.

Sendo assim, a cena descrita nesse texto é interessante por apresentar um outro viés de um encontro sexual que se iniciou como algo às escondidas. O diálogo dos personagens ao se referirem aos pés descalços e ao rosto visto sob a luz do dia, remetem a algo sobre o direito de exercer sua própria sexualidade e viver seus amores. A cena problematiza essa realidade que coloca os encontros homoafetivos relegados ao pecado e à abominação. Existe uma criminalização do sexo entre a comunidade LGBT que ainda reina e que nos faz muitas vezes legitimar as relações às escondidas, aos becos escuros, às matas, aos banheiros públicos. O anonimato de um encontro de sexo casual, por exemplo, pode muito bem funcionar para muitas pessoas, mas é importante que se perceba se esse anonimato é uma escolha, talvez até um fetiche ou experiência que os envolvidos escolheram para si, ou se é apenas uma realidade posta pela caça às relações entre pessoas do mesmo sexo, ou seja, é preciso refletir se quem escolheu o seu lugar de afeto foi você e não o medo e a homofobia.



As citações acima estão presentes no artigo "O poder de nomear e a construção das representações sobre masculinidades em aplicativos de interação afetivo-sexual no Brasil" escrito por Francisco Arrais Nascimento, Luis Fernando Herbert Massoni, Daniel Martínez-Ávila e Fábio Assis Pinho. Do livro: "Do invisível ao visível: saberes e fazeres das questões LGBTQIA+ na Ciência da Informação" organizado pela Nathália Romeiro, Bruno Almeida e Carlos Wellington - Selo Nyota, 2019.